Song Exploder: o podcast em que os artistas dissecam as suas músicas virou uma série da Netflix

Alicia Keys, Lin-Manuel Miranda, Ty Dolla $ign e os R.E.M. são os convidados especiais desta série da Netflix que não foge da fórmula do podcast a partir do qual nasceu.

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Michael Stipe e os restantes membros dos R.E.M. reflectem sobre o sucesso monumental de Losing My Religion Netflix
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Alicia Keys desconstrói a criação de 3 Hour Drive Netflix

Hrishikesh Hirway já recebeu “estrelas” de todos os tamanhos e feitios em Song Exploder, o podcast de quase 200 episódios – o 197.º, com os Run the Jewels, foi lançado na semana passada – em que artistas descrevem e desmistificam o processo de criação das suas canções mais conhecidas. Foi a este músico de 41 anos que Björk recordou como surgiu a inspiração para o tema Stonemilker, escrito na mesma praia islandesa onde filmou o icónico vídeo homónimo, em 360 graus; que Courtney Barnett lembrou as histórias pessoais que desaguaram em Depreston, a tristemente bela faixa do álbum Sometimes I Sit and Think, Sometimes I Just Sit; que Angel Olsen se pôs a falar sobre Shut up kiss me; que Moses Sumney explicou como nasceu Quarrel; e que os Fleetwood Mac tiraram Go your own way do baú.

Agora, a Netflix apostou no criador norte-americano e no seu projecto, num formato que é basicamente “o podcast, desta vez com imagens”. Efectivamente, os quatro episódios desta experiência – cujos convidados especiais são Alicia Keys, Lin-Manuel Miranda, Ty Dolla $ign e os R.E.M. – não se desviam muito da fórmula que Hirway vem afinando desde que criou o programa em 2014, o que quer dizer que, como acontece no podcast, a reacção dos espectadores/ouvintes aos diferentes episódios dependerá sobretudo daquilo que sentem relativamente aos artistas (e às canções) em questão.

Os momentos mais interessantes de Song Exploder surgem quando Hirway isola determinados instrumentos ou “confronta” os seus entrevistados com versões inacabadas dos temas. Estas desconstruções encherão as medidas dos super-fãs que gostam de devorar todos os esboços que conseguem encontrar das suas faixas preferidas e, ao mesmo tempo, produzem situações de genuíno humor. O rapper Ty Dolla $ign, que aparece a discorrer sobre LA, canção de 2015 que inclui um verso de Kendrick Lamar, é apanhado de surpresa quando o anfitrião põe a tocar apenas a sua voz, tirando da equação o resto da mistura. “Onde é que arranjaste os meus ficheiros? Alguém na editora vai ser despedido”, comenta, entre risos.

Já o vocalista Michael Stipe fica indisfarçavelmente constrangido e encolhe os ombros quando ouve uma versão primitiva de Losing my religion, hino de 1991 que fez dos R.E.M., até então uma banda fundamental na cena pós-punk norte-americana dos anos 1980, um fenómeno pop. Esta aversão do artista – que por esta altura já está mais do que familiarizado com o conceito de Song Exploder, tendo aparecido de novo no 125.º episódio do podcast, dedicado à canção Try not to breathe – ao material mais cru do grupo que integrou durante quase 30 anos não é nova, pelo que surpreendente seria se falasse num tom arrogante. Não é todos os dias que Stipe faz o que faz no documentário Automatic Unearthed – lançado em 2017, a propósito do 25.º aniversário do álbum Automatic for the People –, onde se refere com (justificado) orgulho ao seu trabalho num rascunho ainda muito solto de Find the river.

Quando um bandolim tomou conta da rádio

O episódio dedicado a Losing my religion é excepcionalmente bem conseguido, o que não é de estranhar, dada a dimensão estratosférica do próprio tema. “Esta era uma música de cinco minutos sem um refrão discernível e com um bandolim como instrumento principal. Por que é que alguém haveria de querer passá-la na rádio?”, começa por comentar o baixista Mike Mills, que, como o baterista Bill Berry e o guitarrista Peter Buck, toca as suas partes para a câmara e conta como chegou, por acidente ou teimosia, às melodias.

A intervenção do lendário Buck é particularmente engraçada: o artista refere que só um ano depois de co-assinar a faixa se apercebeu de que a sua progressão de bandolim é mais ou menos semelhante a uma música que o compositor Ryuichi Sakamoto gravou para a banda sonora da longa-metragem Feliz Natal, Mr. Lawrence (Nagisa Oshima, 1983). “Estou aqui a tocar uma coisa que parece um riff todo bluegrass de um músico japonês num filme com o David Bowie. Por favor, não me processem. Seria simpático não ser processado na minha velhice”, assinala.

Buck, mostra Song Exploder, estava cansado das guitarras eléctricas no início dos anos 1990. Foi ele o principal responsável pela inclusão da orquestra de cordas no último minuto de Losing my religion, que a Warner Records não queria escolher como single de apresentação de Out of Time – disco cujo título, lembra Bill Berry, surgiu numa altura em que o quarteto estava a ficar “literalmente sem tempo” para entregar à editora uma capa, funcionando hoje como uma boa metáfora que resume na perfeição um conjunto de canções “distantes do seu tempo”, aparentemente indiferentes à explosão do grunge em Seattle. A gravadora preferia a muito mais colorida Shiny happy people, que até hoje tira Stipe do sério. “Eu sou o único na banda que não sente vergonha dessa música”, defende o guitarrista.

Stipe, por sua vez, recorda como a ambiguidade da “assustadoramente bela” Every breath you take, dos Police, lhe deu o empurrão para inventar uma personagem semi-autobiográfica que chama por alguém, sendo que, diz, “não sabemos se esse alguém sequer sabe que a pessoa existe”. Uma história de amor não correspondido e de “vulnerabilidade”, escrita por um jovem Michael Stipe que, para fazer as palavras saírem do seu cérebro, caminhava em círculos enquanto o grupo ensaiava, com uma máquina de escrever sempre por perto e um gravador à mão.

Só para os fãs hardcore

Este convite à dissecação que caracteriza Song Exploder aproxima-o de VH1 Storytellers – outro programa musical em que, num ambiente intimista, diferentes artistas dão conta do processo de criação dos seus temas – sem os momentos performativos (se bem que Lin-Manuel Miranda, responsável pelo musical Hamilton e pela canção Wait for it, não saiba falar para uma câmara sem fazer uma “performance”...). Os grandes planos que a realização adora dão um toque por vezes excessivamente dramático às conversas, mas a animação criativa – e, por comparação, surpreendentemente subtil – que dá algum floreado ao episódio com Ty Dolla $ign ajuda a equilibrar os pratos da balança.

Regra geral, no entanto, não há muito que fortaleça os argumentos de Song Exploder do ponto de vista visual (tirando o que vemos nos últimos minutos dos episódios, mas mais sobre isso já a seguir). A apresentação não se desvia daquela que é a estética “tradicional” da televisão documental, pelo que não há grande coisa que diferencie a série do conteúdo que pode ser consumido no podcast. A história de como Alicia Keys escreveu 3 hour drive pouco depois de ser mãe pela segunda vez e de como transformou a faixa numa meditação sobre o luto depois de se lhe juntar Sampha – músico britânico que dedicou à falecida mãe o álbum Process, de 2017 – é interessante, mas não precisa do aparato da Netflix para ser contada, por mais que os fãs do seu trabalho possam apreciar as imagens da pianista no estúdio.

A palavra “fãs” acaba por ser decisiva: quem gostar das músicas que a série escolhe desconstruir dificilmente não se divertirá com o formato, ao passo que quem não lhes achar tanta piada poderá não assistir os episódios até ao fim, por mais que não ultrapassem os 30 minutos de duração. O bónus para quem não desiste a meio: depois das entrevistas, os temas em destaque são tocados na íntegra, com pequenas pinceladas de animação que dialogam com as letras.

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