Um blind date entre um texto e um actor

White Rabbit, Red Rabbit, peça-hit do dramaturgo iraniano Nassim Soleimanpour, estreia-se esta quarta-feira em Portugal, na Mala Voadora. O texto será apresentado mais 11 vezes ao longo do ano, por diferentes actores e actrizes portugueses – e nenhum deles sabe aquilo que o espera.

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Para Nassim, White Rabbit, Red Rabbit é “um bocado como a vida” Hilde Vanstraelen
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O dramaturgo iraniano Nassim Soleimanpour Nima Soleimanpour

Nassim Soleimanpour (Irão, 1981) terá sempre uma história muito especial para contar. Uma história que começou com um pesadelo, em que se suicidava durante um espectáculo em frente aos pais e amigos, e que acabou numa peça traduzida em mais de 30 línguas, representada em vários pontos do mundo por actores e actrizes menos e mais conhecidos, entre eles Whoopi Goldberg, Sinéad Cusack ou Ken Loach. A peça, White Rabbit, Red Rabbit (2010), a sua primeira, tornou-se um hit global. E tornou Nassim na next big thing, com ele a quilómetros de distância de cada palco, de cada apresentação, sem saber muito bem o que estava a acontecer.

Pelo menos em teoria, pelo menos em parte, estava preparado para isso. Por ter recusado cumprir o serviço militar, Nassim Soleimanpour foi impedido de sair do Irão. Escreveu então White Rabbit, Red Rabbit, um texto que pudesse ter a circulação que lhe foi proibida. Sem cenário, sem figurinos e sem ensaios, esta peça em formato portátil é um blind date, em directo, entre um actor e um texto – a regra de ouro imposta por Nassim é que o intérprete só pode ter o primeiríssimo contacto com o texto no momento em que entra na sala, para o ler, já com o público à sua frente.

Uma missão secreta que deu a volta ao mundo e que se estreia agora em Portugal, cortesia da Mala Voadora, no Porto, que propõe realizar esta peça 12 vezes ao longo de 2018. No dia 10 de cada mês, um performer diferente, a solo, dará voz a White Rabbit, Red Rabbit. Esta quarta-feira, às 22h, o primeiro a mergulhar no desconhecido é o actor e encenador João Pedro Vaz. A ele seguem-se (por ordem alfabética, não por ordem de apresentação, também ela segredo) Ana Deus, Fernanda Lapa, Gonçalo Waddington, Maria do Céu Ribeiro, Maria João Luís, Mónica Calle, Paula Sá Nogueira, Pedro Penim, Tiago Rodrigues, Tónan Quito e Vera Mantero. Nenhum deles pode assistir à performance dos colegas.

“Uma das forças desta proposta é o actor e o público conhecerem o texto ao mesmo tempo”, assinala Vânia Rodrigues, gestora cultural da Mala Voadora. Foi essa vontade de partilha, e de esbatimento de hierarquias, que levou também Nassim Soleimanpour a escrever esta peça. “Os erros que ocorrem durante os ensaios não são partilhados com o público. Quando lês o texto pela primeira vez, quando eventualmente não interpretas bem o que é suposto fazer… Queria experimentar esse tipo de coisas com quem vê os espectáculos”, diz ao PÚBLICO o dramaturgo iraniano, hoje um artista consagrado a viver em Berlim que já consegue estar bem perto das suas próprias criações, com várias digressões internacionais no passaporte – tudo mudou em 2013, ano em que viu pela primeira vez uma apresentação de White Rabbit, depois de ter sido dispensado do serviço militar graças a um check-up médico, em que descobriu ter visão parcial no olho esquerdo.

Para Nassim, White Rabbit, Red Rabbit é “um bocado como a vida”. O texto é baseado em instruções, mas ninguém sabe o que vai acontecer a seguir. “É essa a beleza da vida.” No teatro, é essa a beleza do risco, da recusa do perfeccionismo e do expectável. “Não é o fim do mundo, se não se for um performer perfeito e se se cometer alguns erros. Se o performer aceitar isso e o público também, divertir-nos-emos. Podemos fazer muitos ensaios para o espectáculo ser óptimo, e ser óptimo é fabuloso, mas muitas vezes não é divertido.”

Obedecer (ou não)

Falar das instruções e dos assuntos abordados no texto seria sabotar o secretismo e o elemento surpresa do projecto. Contudo, o autor faz questão de deixar bem claro que a peça não é sobre o Irão, por mais que seja sedutor para o mundo ocidental olhá-la sob essa perspectiva, sobretudo no momento presente (“muito honestamente”, Nassim ainda não conseguiu ter “um entendimento claro” acerca dos protestos que eclodiram recentemente no seu país). “Não digo que a peça não reflicta aspectos do Irão, mas reflecte muitas coisas sobre o ‘Brexit’, sobre Donald Trump, sobre a Catalunha, sobre a Escócia”, afirma o dramaturgo.

Espelha “um fenómeno social transversal”: “O quanto estamos dispostos a obedecer às autoridades e como queremos ou não rejeitá-las. Isto pode aplicar-se tanto ao Irão como ao vosso país.” Para Nassim, não basta saber dizer não – é preciso saber responder com uma contraproposta. E isso, spoilers não incluídos, está ligado a White Rabbit, Red Rabbit – porque este salto para o desconhecido é também “não ter medo de fazer perguntas”. “Ser passivo pode ser, na prática, muito perigoso.” A política é para aqui chamada, sim, mas o teatro também. No caso do dramaturgo, levantar questões implica baralhar e desrespeitar os modos de fazer convencionais do teatro, as suas hierarquias, as suas normas. Experimentar, brincar com as formas. “Vem da minha mente de engenheiro”, explica Nassim, que estudou Engenharia antes de se dedicar à criação artística. “Este engenheiro preocupa-se com mecanismos, portanto é assim que trato um texto.”

Foi precisamente esse desestabilizar “da engenharia do teatro”, activado não só em White Rabbit como nas peças seguintes de Nassim, que chamou a atenção da Mala Voadora, uma cúmplice desse modus operandi. “Há uma série de cânones do teatro que o White Rabbit reverte através da sua solução formal, e quem acompanha as criações da Mala Voadora sabe que nos interessa muito o facto de as questões formais pré-existirem e serem tão importantes como o resto”, diz Vânia Rodrigues. Este projecto inaugura ainda um novo ciclo no trabalho de programação da Mala para 2018, em que as propostas programadas estarão, de alguma forma, em articulação com as criações da companhia – neste caso, há uma ligação com o espectáculo Um Manual sobre o Trabalho e a Felicidade, de Jorge Andrade, José Capela e Pablo Gisbert, realizado no âmbito de um projecto transnacional co-produzido com a Artemrede e que tem estreia marcada para Março, em Patras (Grécia), com paragens em Montijo e Alcobaça entre Abril e Maio. “Nós estamos a investigar, precisamente, como fazer um espectáculo que encerra, em si mesmo, instruções para o fazer, e nesta peça do Nassim as instruções aplicam-se a tudo”, esclarece a gestora cultural da Mala Voadora.

Já o formato escolhido para apresentar esta proposta, com diferentes convidados de mês a mês, é uma forma de “perceber como algo aparentemente objectivo, como são as instruções, pode ser sujeito a um tratamento subjectivo”. Há risco e curiosidade em doses equilibradas, o que levou também João Pedro Vaz a aceitar ser um dos agentes desta missão secreta. Teve uma experiência semelhante quando participou no espectáculo An Oak Tree, de Tim Crouch, que passou pela Culturgest em 2006. Mas foi “péssimo”. “O texto, que também não conhecia, era em inglês, não correu muito bem. Agora é em português, isso deixa-me mais à vontade”, diz, pronto para sair da sua zona de conforto. “Estou um bocado nos antípodas disto, porque sou um actor que precisa de uma relação longa com o texto. Mas cá estou, na minha absoluta ignorância e muito curioso para ver o que irá acontecer.”

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