David Ginola: “Porque estou vivo? É uma pergunta para a qual não tenho resposta”

O antigo avançado francês fala do dia em que esteve morto durante nove minutos, do “seu” PSG e do actual e recorda os tempos em que trabalhou com Artur Jorge.

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Reuters

Para David Ginola, “o dia em que o meu coração parou” não é uma canção romântica ou um poema de amor. A 19 de Maio do ano passado, o antigo internacional francês teve um ataque cardíaco durante um jogo de caridade no sul de França e esteve morto durante nove minutos. Alguém lhe prestou os primeiros socorros e Ginola sobreviveu para contar a história e envolver-se num projecto chamado “Nodds”, uma plataforma integrada que pode poupar tempo quando uma situação semelhante acontece, identificando os desfibrilhadores mais próximos ou quem estará mais perto e possa prestar os primeiros-socorros. Foi para apresentar este projecto que Ginola esteve em Lisboa, na Web Summit, num dia com forte componente desportiva. Em conversa com o PÚBLICO, falou do “Nodds” e de outras coisas, do título europeu de Portugal, dos títulos da selecção francesa e de Artur Jorge, um dos melhores treinadores da sua carreira.

Fale-me do dia em que o seu coração parou.
Foi em Maio do ano passado, durante um jogo de futebol para caridade. Caí no chão e estive morto durante nove minutos. Tão simples como isso. Mas alguém no campo sabia fazer CPR [massagem cardíaca], salvou-me a vida, fizeram-me um quádruplo bypass no coração. Um ano depois, ainda penso que foi um milagre. O cirurgião que me operou disse-me que fui um sortudo, que devia estar morto. É algo que eu ainda pergunto a mim próprio: porque é que estou vivo? É uma pergunta para a qual nunca tenho resposta.

E pensa nisso todos os dias?
Quando tomo um duche, vejo sempre a enorme cicatriz que tenho no peito. Lembra-me sempre o que aconteceu.

Tinha algum hábito que potenciasse esse episódio? Álcool, tabaco?
Era uma coisa hereditária, do meu pai e da minha mãe. A minha mãe morreu em 2005 com um ataque cardíaco, o meu pai também teve problemas de coração. Estava em risco por causa da minha história familiar e precisava de fazer check-ups regulares, mas não fazia. Ninguém gosta de ir ao médico porque ficamos assustados com o que ele pode dizer. Evitamos essas coisas e isso está errado.

O que é que mudou na sua vida depois desse dia?
Depois da operação fiquei bem. O médico disse-me que fiquei bom para os próximos 25 anos. Mas estive muito perto de algo que me fez mudar muita coisa. Tive muitos amigos que passaram pelo mesmo, como Marc Vivien-Foé [médio camaronês que morreu em 2003 durante um jogo da Taça das Confederações].

Em Portugal tivemos o caso de Miki Fehér, entre outros menos mediáticos…
Sim, a mesma coisa. Há casos de ataques cardíacos que acontecem e não há desfibrilhador. O que as pessoas têm de entender é que é preciso haver disfibriladores em todo o lado, e todos devem saber onde há um. Num avião, as hospedeiras dizem onde estão as saídas, onde estão os coletes… Quando estamos numa situação dessas entramos em pânico. Por isso, precisamos de saber antes. Nos sítios onde se pratica desporto tem de haver sempre um disfibrilador. É o que faz a diferença entre a vida e a morte.

E é por isso que quer aproveitar a força das redes sociais com o “Nodds”…
Não apenas as redes sociais. Todos os objectos que estão conectados e que nós usamos todos os dias, smartphones, tablets… E assim reduzimos o tempo de resposta. Os primeiros dez minutos são cruciais, e às vezes já é demasiado tarde. É por isso que eu estou vivo, porque alguém sabia CPR. Foi o que o cirurgião me disse, ele só estava a fazer o trabalho dele, mas não podia fazer nada se o meu cérebro estivesse morto. É por isso que os primeiros minutos são tão importantes, manter o cérebro vivo. É isso que queremos com o “Nodds”, que todos estejam conectados, aqueles que sabem CPR, aqueles que podem estar no local em menos de dois minutos.

Falemos um pouco de futebol. Como eram os seus tempos no Paris Saint-Germain nos anos 1990, com Artur Jorge?
Foram tempos brilhantes. Já tinha conhecido o Artur Jorge quando estava no Matra Racing de Paris, antes do PSG. Ganhámos o campeonato, duas taças, fui eleito o melhor jogador de França com Artur Jorge. Adorava o treinador, adorava o homem, não falava muito, mas sempre que o jogo me estava a correr bem, eu sabia que ele estava orgulhoso de mim. Foi ele que me quis contratar. Acreditava em mim. Digo sempre isto: Artur Jorge foi um dos meus treinadores preferidos.

Uma história com Artur Jorge desses tempos…
Era engraçado. Fazíamos sempre o mesmo treino, o aquecimento e o treino, e nós fartávamo-nos de rir por estarmos sempre a fazer a mesma coisa. Era o mesmo durante a semana inteira, mas funcionava. Tínhamos o Ricardo Gomes, tínhamos o Valdo, o Raí, George Weah, Le Guen, eu, Roche… Nessa equipa falávamos muito uns com os outros, tínhamos momentos em que nos juntávamos todos num dos quartos e falávamos, para termos a certeza de que estávamos todos a pensar o mesmo. Artur Jorge era uma pessoa muito humilde e gostávamos muito dele. Não precisava de dizer muito para se fazer entender… [Ginola faz um gesto com os lábios para sugerir o bigode robusto que Artur Jorge tinha na altura, e faz um gesto a relembrar o boné que também era uma das imagens de marca do português]. “David, c’est pas possible!” [e lembra-se de algumas asneiras em português que o treinador dizia]. ‘Foda-se, caralho’. São as primeiras coisas que aprendemos quando estamos a aprender uma nova língua [risos].

Esse PSG era uma grande equipa. E está a emergir agora um super-PSG, com Neymar, Mbappé… Como seria um jogo entre o seu PSG e este?
Estes podem ganhar qualquer coisa… Não sei, é difícil fazer comparações. São 20 anos de diferença. O importante é olhar para a forma como a equipa está arrumada no campo. Esta tem uma defesa forte, um meio-campo muito forte e um ataque espectacular, que marca golos “just for fun”. O objectivo deles é ganhar a Liga dos Campeões já. Não tenho dúvidas de que irão longe. Talvez ainda falte um pouco de maturidade a este nível, mas olhamos para eles a jogar e percebemos que eles se sentem fortes — e são fortes. Neymar mudou tudo, com ele parece tudo fácil, ele elevou a equipa a um nível mais alto.

E a final do Euro 2016, o que lhe pareceu a vitória de Portugal contra a França?
Parabéns! Bravo! Eu estava no Stade de France e os adeptos foram espectaculares, fiquei surpreendido com eles, foram fantásticos, criaram uma bela atmosfera no estádio. Portugal mereceu ganhar. Não há muito mais que eu possa dizer. Fizeram um Euro muito forte e a falta de Ronaldo a partir dos 20 minutos mudou completamente o jogo. Era dele que os franceses tinham medo e, por outro lado, foi um extra de motivação para a equipa portuguesa. Foi merecido. Não concordo com quem diz que foi uma vergonha, nada disso.

Por falar em vitórias em finais, o David falhou por pouco o título da França no Mundial 98 e o título europeu em 2000…
É a vida. É isso mesmo. Não posso voltar atrás no tempo e pensar no que podia ter feito. Talvez tivesse feito as coisas melhor, evitar alguns desses problemas. Não sei de ninguém que tenha inventado uma máquina do tempo para fazer as coisas de maneira diferente. Obviamente que se tivesse tido uma carreira internacional diferente, isso talvez tivesse mudado muito a minha vida, mas é o que é.

Usaria essa máquina do tempo para mudar os momentos em que poderia ter ido para o Real Madrid ou o Barcelona?
É uma boa pergunta. Há algumas coisas que eu gostaria de mudar, talvez mudasse uns cinco ou seis anos, mas sem arrependimentos.

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