Valegro, a despedida de um cavalo sem igual

Recordista mundial e bicampeão olímpico, o baio de pêlo escuro elevou o dressage a um nível nunca visto. A carreira daquele que é apontado como “o” cavalo chegou ao fim: “Queria que ele terminasse no topo”, disse a cavaleira Charlotte Dujardin.

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"Ele é simplesmente o melhor. Em todos os sentidos, é o cavalo perfeito", diz Charlotte Dujardin David Rogers/Getty Images

Mais um campeão, recordista mundial e dono de várias medalhas olímpicas (três de ouro e uma de prata), colocou um ponto final na carreira. Tal como Michael Phelps e Usain Bolt, falamos de um atleta que brilhou este ano no Rio de Janeiro – e que, tal como o nadador americano e o velocista jamaicano, não voltará a pisar os grandes palcos olímpicos. A carreira competitiva de Valegro, um baio de pêlo escuro apontado por muitos como “o” cavalo, aquele que deu visibilidade e elevou o dressage (ensino) a um nível nunca visto, terminou numa despedida apoteótica, perante bancadas esgotadas com vários meses de antecedência.

Esta é a história de um cavalo que, aos 14 anos, ganhou tudo o que havia para ganhar. Valegro sai de cena pela porta grande, tendo conquistado nos Jogos Olímpicos de 2016 o ouro na prova individual de ensino e a prata no concurso por equipas. Há quatro anos, em Londres, tinham sido duas medalhas de ouro, num duplo feito histórico: pela primeira vez, a equipa britânica e uma das suas cavaleiras sagraram-se campeãs olímpicas na disciplina de ensino. No currículo Valegro ostenta também os títulos europeu (2013 e 2015) e mundial (2014), assim como um duplo triunfo na Taça do Mundo de ensino (2014 e 2015), e detém os recordes mundiais nas três categorias do escalão sénior: Grande Prémio (87.460%), Grande Prémio Especial (88.022%) e Grande Prémio Freestyle (prova livre com música, 94.300%).

Tão protagonista como Valegro nesta história de triunfo, a cavaleira Charlotte Dujardin não escondeu a emoção na hora de dizer adeus ao companheiro, após o evento do início de Dezembro no recinto londrino Olympia: “Estou a tentar manter a compostura. Queria que ele terminasse no topo porque não há mais nada que pudesse pedir-lhe. E agora, sem qualquer pressão, podemos simplesmente desfrutar. É algo que ele merece”, sublinhou a britânica de 31 anos. “Ele é simplesmente o melhor. Em todos os sentidos, é o cavalo perfeito”, acrescentou Dujardin. No ecrã gigante, uma mensagem curta resumia o sentimento generalizado: “Obrigado Valegro”.

“Apercebemo-nos de que ele era uma super-estrela quando participou no primeiro Grande Prémio. Ele é capaz de transportar aquilo que aprende em casa para os maiores recintos”, notou Carl Hester, co-proprietário de Valegro e mentor de Charlotte Dujardin, logo após a despedida. “Ver a Charlotte e o Valegro foi um dos maiores privilégios da minha vida. Adorei cada minuto. Ver o quanto evoluíram ajudou-me enquanto treinador. Aprendemos muito com ele e adoro vê-lo a competir. Sei que as pessoas fazem sempre muitos elogios à Charlotte e a mim, mas muito simplesmente, sem este cavalo incrível, não estaríamos onde estamos agora”, acrescentou o cavaleiro olímpico britânico.

O cavaleiro Richard Davison, ex-capitão da equipa britânica nos Jogos Olímpicos de 2008 e que competiu em 1996, 2000, 2004 e 2012, chegou a descrever Valegro como “o Muhammad Ali do dressage”, numa comparação entre a relevância desportiva do baio de pêlo escuro e a do maior pugilista de todos os tempos. “É um cavalo que só veremos uma vez na nossa vida”, resumiu.

Um entendimento perfeito

Dressage é a base para todas as disciplinas equestres. Cavalo e cavaleiro executam um teste de movimentos que é julgado em qualidade, precisão e apresentação”, descreve o Comité Olímpico de Portugal. “O ensino tem por finalidade desenvolver harmoniosamente o organismo e as faculdades do cavalo. Deve, por consequência, torná-lo, ao mesmo tempo, calmo, suave, descontraído e flexível, mas também confiante, atento e colaborante, realizando assim um entendimento perfeito com o seu atleta”, lê-se no regulamento nacional de ensino da Federação Equestre Portuguesa, onde se listam os seis pontos que caracterizam o cavalo bem trabalhado: ritmo, souplesse, contacto, impulsão, rectitude e concentração.

Até dominarem esta disciplina a nível mundial, houve um longo caminho a percorrer por Charlotte Dujardin e Valegro. Foi por um acaso que nasceu esta relação tão bem-sucedida: ela montou desde tenra idade e chegou a competir nos saltos de obstáculos, mas a família teve de desfazer-se dos cavalos quando o pai começou a sentir dificuldades nos negócios. Seria através de uma amiga da sua mãe que trabalhava nas cavalariças de uma propriedade nos arredores de Londres que manteve a ligação à disciplina equestre: ao longo de uma semana, ajudou-a a adestrar cavalos de nível Grand Prix (o mais alto dos oito que constituem o dressage) e fez progressos rápidos e inesperados, o que a motivou a aprofundar o estudo dos movimentos característicos do ensino, recorrendo a um DVD apresentado por Carl Hester, contou Sam Knight na revista The New Yorker.

A família Dujardin voltaria a ter condições para manter um cavalo alguns anos depois, graças à herança que a avó materna deixou. Charlotte treinou o novo cavalo durante três anos, enquanto trabalhava num pub para juntar dinheiro, e aos 21 anos apresentou-se num concurso de talentos. Não seria seleccionada, mas Carl Hester, que era o cavaleiro de teste, decidiu dar uma oportunidade à jovem: acedeu a dar-lhe aulas após montar o cavalo que Charlotte apresentara a concurso, impressionado pelo facto de ela ter conseguido ensiná-lo sem qualquer experiência.

A oportunidade de trabalhar com Hester proporcionou a Charlotte o primeiro contacto com um capão Warmblood holandês chamado Valegro, cujos movimentos eram tão bruscos que magoavam as costas dos cavaleiros. A tarefa de Charlotte era simples, e no entanto profundamente complexa: controlar a força e energia deste cavalo, do qual Hester estava disposto a desistir. Incansável, a cavaleira não baixou os braços e os progressos foram surgindo com o tempo. A estreia de Charlotte e Valegro num evento Grand Prix aconteceu em 2011 e terminou com o primeiro lugar do pódio. Foi uma questão de tempo até a dupla estabelecer o seu primeiro recorde mundial, numa caminhada que culminou com o duplo ouro olímpico em 2012, junto ao Tamisa.

O pior estava para vir: depois dos Jogos Olímpicos, Carl Hester colocou Valegro à venda. “O Carl também vem de uma família sem historial na equestre”, disse Charlotte à The New Yorker, sensível às limitações financeiras do seu mentor. “Fartei-me de chorar. Foi muito doloroso, mas não dependia de mim”, afirmou a cavaleira. O preço estimado de Valegro rondava os seis milhões de libras (sete milhões de euros ao câmbio actual). Após longos meses de negociação, os proprietários do cavalo chegaram a acordo com um comprador – mas a transacção falhou à última hora e o dinheiro nunca chegou à conta.

Um ano e meio depois da notícia que abalou Charlotte, Carl Hester deixou de estar disponível para ouvir propostas para a aquisição do baio de pêlo escuro. Um novo investidor entrou na sociedade que detém Valegro e a tranquilidade regressou. Cavalo e cavaleira puderam concentrar-se na competição – no final de 2013, a dupla arrebatou o único recorde mundial que ainda não lhe pertencia, na prova livre com música. O resto da história é conhecido: Charlotte e Valegro conquistaram mais duas medalhas olímpicas no Rio de Janeiro e há duas semanas encerraram a carreira em comum com uma despedida emocionada. Com um obrigado e um adeus, o cavalo sem igual tomou o seu lugar na história.

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