Espanha, a crise financeira e os erros do Governo

Pedro Solbes fez uma leitura crítica da sua própria actuação e da do Governo de Zapatero durante a grave crise que afectou o país.

1. Em Maio do ano passado o Parlamento espanhol criou uma comissão especial denominada Comissão de Investigação sobre a Crise Financeira de Espanha e o Programa de Assistência Financeira com o intuito de promover o esclarecimento possível sobre as causas e a natureza da grave crise que afectou o país vizinho. No âmbito dos trabalhos dessa comissão foram ouvidos no decorrer desta semana vários ex-responsáveis pela condução da política económica e financeira dos Governos de Aznar e de Zapatero. Ontem de manhã ocorreu a audição de Pedro Solbes, que exerceu as funções de Ministro das Finanças e de vice-presidente do Governo de Zapatero entre Abril de 2004 e Abril de 2009. Solbes, que havia desempenhado anteriormente as funções de Comissário Europeu dos Assuntos Económicos e Monetários, era, à época, uma das principais personalidades políticas espanholas, quer pela função que exercia, quer pelo prestígio de que dispunha.

Ontem no seu depoimento perante os parlamentares optou por fazer uma leitura crítica da sua própria actuação e da do Governo em que se integrava no decorrer do período histórico em apreciação. Começou por reconhecer que se haviam equivocado totalmente nas previsões macroeconómicas revelando-se incapazes de detectar a verdadeira amplitude da recessão verificada em 2009, o que prejudicou a adopção de medidas mais adequadas à tormentosa situação então vivida. Indo ainda mais longe reconheceu que em anos anteriores se poderia ter executado uma política orçamental mais focada na obtenção de superavits, de modo a robustecer as finanças públicas, assim como reconheceu também que algumas decisões tomadas no sentido da redução da carga fiscal ou da promoção de múltiplos investimentos públicos não foram as mais razoáveis.

Esta atitude, rara em tempos tão dados a exaltações fanáticas, merece consideração e deve originar reflexão. Não faltarão, decerto, comentários contraditórios acerca das mesmas, ora enfatizando uns o demérito da lucidez póstuma, ora contestando outros a própria natureza das considerações enunciadas, ora saudando ainda outros a bondade do gesto autocrítico. É natural que assim ocorra numa sociedade liberal e pluralista.

Há dois aspectos que em minha opinião devem ser destacados no depoimento de Pedro Solbes: o reconhecimento do erro à luz de uma informação superveniente e a identificação da natureza desse erro em função de um posicionamento doutrinário e político devidamente consolidado.

Em relação ao primeiro aspecto haverá que salientar o que nele releva de uma atitude de grande seriedade intelectual. A decisão política é por definição contingente, indissociável do contexto específico em que é tomada e da própria precariedade inerente a toda a actividade humana. As democracias liberais assentam precisamente, entre outras coisas, na aceitação dessa contingência e, como tal, convivem melhor do que qualquer outro regime político com o modelo da tentativa e erro como fórmula preferencial da acção política. Por isso mesmo este tipo de regime revela pouca compatibilidade com o excesso de convicção que leva ao dogmatismo e ao sectarismo. Pelo contrário, ao compreender o carácter falível de toda a decisão acaba por apelar à prevalência de um permanente espírito crítico. Dessa forma, o reconhecimento do erro não constitui nenhum modo de expiação moral, como é característico das ditaduras, mas antes uma manifestação de lucidez política.

Já no que diz respeito ao segundo ponto parece-me muito relevante que um homem que sempre se situou no campo da esquerda liberal e democrática formule o tipo de considerações que ele próprio proferiu acerca de alguns aspectos da sua acção governativa. No fundo admitiu que apesar da dimensão da crise internacional o Governo que integrou deveria der agido com maior rigor quer na fase de expansão económica, quer no seu momento recessivo. Esta tese colide radicalmente com a interpretação histórica dessa época recente prevalecente em largos sectores da esquerda democrática europeia. Colide, desde logo, com a posição daqueles que identificam qualquer preocupação séria de rigor orçamental com a prática de uma austeridade desumana. Solbes revelou uma grande coragem ao contrariar o espírito sectário do tempo e permitiu, a meu ver, a abertura de uma discussão que desejavelmente também se deve levar a cabo no caso português.  

2. Há umas semanas atrás publiquei neste espaço um artigo intitulado “ A Defesa da Honra do PS “. Tal como previa e, aliás, afirmei na ocasião, tal texto originou severas críticas. Não há dúvida que teria sido bem mais cómodo permanecer em silêncio. Só que tal comodidade incomodar-me-ia. De resto, as críticas que me foram dirigidas não se afastaram do campo da argumentação democrática livre e racional e, como tal, merecem a consideração de uma resposta.

Em nenhum momento desse meu texto afirmei que o PS enquanto instituição ou aqueles, muitos, que em seu nome agiram não cometeram erros ou não praticaram actos merecedores de reprovação. Também não só não reclamei para o PS o exclusivo do contributo para o que de melhor sucedeu no nosso percurso nacional nas últimas décadas como até critiquei a tese, hoje muito divulgada, que procura desqualificar a contribuição fornecida por outros partidos, em especial os que se situam no campo da direita democrática e liberal. 

O que afirmei e reitero é a minha plena convicção de que o PS teve ao longo dos anos um papel decisivo na edificação do regime democrático, na criação de condições promotoras do desenvolvimento económico e na instauração de um Estado Providência que dignificou a vida de milhões de portugueses. Afirmei ainda que essa é a verdadeira identidade do PS contrariando, desta forma, a caluniosa imputação que lhe tinha sido dirigida pelo Bloco de Esquerda. Admitirão aqueles que me criticaram que a natureza da minha intervenção pública não é coadunável com qualquer tipo de obstinação acrítica ou de proselitismo primário.

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