Inspector Paulo Silva propõe criar a PT, a “Polícia Tributária” do fisco

Com experiência na investigação criminal em mega-processos, como a Operação Marquês, Paulo Silva denuncia falta de meios no fisco. Inspectores têm de usar os seus próprios carros para fazer diligências.

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Paulo Silva trabalhou na Operação Marquês, que tem Ricardo Salgado como arguido Rui Gaudencio

É uma proposta polémica. O inspector tributário Paulo Silva assume-o e dá o pontapé de partida para a discussão no espaço público: reorganizar organicamente a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para criar dentro da instituição uma unidade nuclear judiciária, a “Polícia Tributária (PT)”. O nome é meramente indicativo, mas a ideia de fundo já serviu para despertar a reflexão entre inspectores do fisco. Essa foi uma das sugestões que Paulo Silva, com experiência em inquéritos criminais de especial complexidade como a Operação Furacão, Monte Branco e Operação Marquês, foi deixar ao 3.º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais e Aduaneiros, que terminou nesta quarta-feira no Porto. O debate do prós e contras começa agora.

Com a informatização, a máquina fiscal enfrenta uma mudança de paradigma, com uma diminuição dos procedimentos administrativos de inspecção e um aumento dos processos de inquérito (aqueles em que hoje o fisco coadjuva o Ministério Público enquanto órgão de polícia criminal). “[Com] a quantidade de informação que hoje em dia temos na AT, muita dela tratada mecanicamente de uma forma automática, vão começar a sobrar meios para podermos actuar dentro da inspecção tributária noutros moldes, ou seja, passar de um procedimento inspectivo tradicional para uma actuação que implica a recolha de prova e de elementos para fazer um trabalho eficiente e eficaz no quadro de uma inspecção tributária que se baseia muito a nível de processo criminal”, afirmou o inspector da Direcção de Finanças de Braga. E é nesse contexto que propôs a criação dessa unidade de “Polícia Tributária”. A sigla da estrutura seria “PT”, um nome que Paulo Silva acredita que pode “perfeitamente vingar” em Portugal porque passados estes anos já “pouca gente se lembra” que a PT era a Portugal Telecom…

Hoje, o fisco está organizado internamente em dois grandes blocos: as Direcções de Finanças/Alfândegas; e os serviços centrais (onde estão as direcções de serviços – IRS, IVA, etc., o Centro de Estudos Fiscais e a Unidade dos Grandes Contribuintes). O que o inspector da Direcção de Finanças de Braga foi apresentar ao congresso foi uma proposta de alteração legislativa para que a AT passe a ter uma terceira unidade orgânica nuclear, a Polícia Tributária, por sua vez dividida em unidades orgânicas regionais e locais.

Questionado por um inspector presente na plateia se esta unidade deveria permanecer na alçada do Ministério das Finanças ou se passaria para o Ministério da Justiça, Paulo Silva esclareceu que a ideia que defende é de a nova estrutura se manter dentro da autoridade tributária (portanto, no Ministério das Finanças), aproveitando “todas as sinergias, todos os conhecimentos que [lá] existem”.

Falta de meios

No mesmo congresso estava o director do Departamento Central de Investigação e Ação Pena (DCIAP), Amadeu Guerra, que embora não se tenha pronunciado explicitamente sobre a proposta de Paulo Silva, afirmou: “A AT deve fazer um caminho de compatibilização das funções operacionais no âmbito da inspecção tributária com as preocupações da investigação criminal”. E isso significa que as funções “tradicionalmente vocacionadas para a cobrança de impostos e obtenção de receita têm de ser compatibilizadas com os aspectos de investigação criminal”.

Falando de situações práticas para falar das dificuldades que se colocam nas investigações, Amadeu Guerra lembrou, por exemplo, que as entidades que investigam – o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal que o coadjuvam (onde se inclui a AT) – “nem sempre dependem só de si, muitas vezes”, mas da cooperação internacional. E há cartas rogatórias que não são cumpridas. Como exemplos referiu as Baamas e alguns países africanos, ou mesmo o caso do Reino Unido como um país com quem nem sempre é fácil obter uma cooperação rápida.

Segundo Paulo Silva, uma das maiores dificuldades que o fisco hoje enfrenta é essa falta de pessoas em investigação. Dos 2774 funcionários que no final do ano passado pertenciam à inspecção tributária só 68,7% (1906) estavam efectivamente afectos à inspecção tributária, quando o ideal, entende, seria ter 95% a fazê-lo, ou seja, mais de 2600. Há 700 inspectores que estão afectos a áreas que não são de inspecção tributária. E a AT precisa de libertar esses funcionários para a área do combate ao crime e fraude fiscal, defendeu, dizendo que o fisco tem recursos humanos dotados com conhecimentos nas áreas da economia, fiscalidade, direito, contabilidade e informática.

Com a experiência de mais de 15 anos enquanto órgão de polícia criminal, a AT desenvolveu técnicas e ferramentas para consultar e analisar um grande acervo de prova, e organizar peças processuais, exemplificou o inspector. Mas se há esse saber adquirido, diz, há dificuldades de organização que é preciso ultrapassar e que limitam essa mesma intervenção.

A formação específica, alerta, tem sido descurada. E há situações concretas que Paulo Silva critica, coisas tão “simples” como o facto de faltarem carros para os inspectores fazerem diligências. O fisco tem automóveis que “nem têm dignidade para serem chamadas viaturas”. “O funcionário tem de colocar os seus próprios meios” para fazer o seu trabalho, denuncia, referindo o seu próprio caso: “vou com a minha própria viatura” fazer diligências. Em relação à informática, diz que a AT está bem equipada, mas que na área da investigação criminal ainda há problemas. Embora perceba as restrições necessárias por causa da segurança da informação, defende outra abordagem, que não especificou.

Ao congresso, Paulo Silva foi levar uma ideia. Não falou sobre os mega-processos que o tornaram uma figura mediática. Abriu a apresentação com uma frase célebre de Benjamin Franklin: “Neste mundo nada está garantido, senão a morte e os impostos”. Terminou com outra, de Sócrates, o filósofo. “Eu não posso ensinar nada a ninguém, eu só posso fazê-lo pensar”.

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