Mitos e factos sobre a actual crise na ADSE

A ADSE, criada há 56 anos, está a atravessar um período conturbado. Entre mitos e factos, grupos privados de saúde e Governo estão num braço-de-ferro que, se não for ultrapassado, acabará por ter consequências transversais.

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Miguel Manso

O que é a ADSE?

A Assistência na Doença dos Servidores Civis do Estado (ADSE) foi criada em 1963, antes de surgir o Sistema Nacional de Saúde (SNS), para “colmatar a situação desfavorável em que se encontravam os funcionários públicos em relação aos trabalhadores das empresas privadas”. Em 1979, com a instituição do SNS, o Estado optou por manter a ADSE até aos dias de hoje.

O sistema funciona como uma espécie de seguro de saúde, mas numa perspectiva solidária (alguns aposentados estão isentos de contribuir) e sem que haja distinção entre os seus beneficiários. A ADSE tem convenções com uma rede de hospitais e prestadores de cuidados de saúde privados aos quais os beneficiários podem recorrer a um custo relativamente baixo (regime convencionado). Os beneficiários podem ainda escolher médicos ou prestadores fora da rede e, posteriormente, a ADSE comparticipa as despesas (regime livre).

Como qualquer cidadão, os beneficiários da ADSE podem também recorrer aos hospitais públicos.

Quem pode beneficiar?

A ADSE destina-se aos funcionários públicos no activo, aos aposentados do Estado e, em alguns casos, abrange também os seus familiares. Em 2017, a ADSE tinha mais de 1,2 milhões de beneficiários, dos quais 800 mil são funcionários públicos e aposentados e os restantes familiares. O número de beneficiários da ADSE tem vindo a diminuir e isso deve-se a várias razões: o congelamento das entradas na administração pública, o recurso ao contrato individual de trabalho e a “limpeza” dos ficheiros ao retirar a categoria de beneficiários a cônjuges por receberem pensões, ainda que muito baixas, da Segurança Social.

O sistema é financiado pelo Orçamento do Estado?

Não. Neste momento, a ADSE é financiada exclusivamente pelos beneficiários (funcionários públicos no activo e aposentados) que todos os meses descontam 3,5% do salário ou da pensão para terem acesso ao sistema. Mas nem sempre foi assim. Quando foi criada, a ADSE era alimentada exclusivamente pelo Orçamento do Estado (OE) e só em 1979 foi instituído o desconto dos beneficiários (que começou por ser de 0,5%). Com o passar do tempo, os beneficiários foram chamados a contribuir com uma percentagem cada vez mais elevada e o Estado, através das entidades empregadoras, continuava a ter um papel importante no financiamento do sistema. Em 2015, as entidades empregadoras deixaram de contribuir para a ADSE e o subsistema passou a ser alimentado apenas pelo desconto dos beneficiários.

A inscrição é opcional?

Até 2005, os funcionários públicos eram automaticamente inscritos na ADSE no momento da admissão. De 2006 em diante, com o encerramento da Caixa Geral de Aposentações a novos subscritores, a inscrição passou a ser opcional. Desde 2011, todos os titulares da ADSE podem abandonar o sistema. Essa renúncia é, contudo, definitiva.

A ADSE é deficitária?

Não, pelo contrário. A ADSE tem vindo a acumular saldos positivos, mas está numa encruzilhada, porque o ritmo de crescimento da despesa com cuidados de saúde é maior do que o ritmo de crescimento das receitas. Em 2017, as despesas aumentaram 8,3% face ao ano anterior, para 557,3 milhões de euros, enquanto as receitas oriundas dos descontos dos beneficiários aumentaram apenas 0,6%, ascendendo a 573,6 milhões de euros. Ainda assim, a ADSE fechou o ano com um resultado líquido de 76,95 milhões de euros.

O Relatório de Actividades da ADSE de 2017 mostra que o crescimento da despesa está a ocorrer sobretudo no regime convencionado. A ADSE transferiu para os hospitais, clínicas, centros de análises e de exames médicos cerca de 410,7 milhões de euros, mais 9,9% do que em 2016. A comparticipação de consultas e actos médicos ao abrigo do regime livre aumentou cerca de 4%, totalizando 146,6 milhões de euros.

Como se garante a sustentabilidade no futuro?

O facto de as despesas estarem a crescer a um ritmo muito superior ao das receitas torna mais premente a tomada de decisões quanto ao controlo das despesas e à entrada de novos beneficiários, que permitam rejuvenescer a pirâmide etária do sistema (metade dos beneficiários têm mais de 50 anos).

A própria ADSE reconhece que os custos com os cuidados de saúde têm vindo a acelerar e a intenção, expressa no seu Plano Plurianual 2018-2020, é “que sejam adoptadas medidas no curto prazo que consigam conduzir o crescimento dos custos para um patamar de 2% a alcançar em 2020”.

O Conselho Geral e de Supervisão (CGS) da ADSE também tem chamado a atenção para a necessidade de se criar “rapidamente um sistema de informação” que permita “um controlo eficaz da despesa, combatendo os consumos excessivos e desnecessários, o desperdício e a fraude (...), procurando assim conter o elevado crescimento dos custos com os regimes convencionado e livre”. O alargamento da ADSE a novos beneficiários é outra das propostas do CGS. Depois de num primeiro momento não ter havido consenso sobre quem deve integrar o sistema, o conselho decidiu propor ao Governo a abertura da ADSE aos trabalhadores com contrato individual dos hospitais EPE, aos beneficiários que anularam a sua inscrição e aos que não se inscreveram no prazo estabelecido. No máximo, estarão em causa 64 mil novos subscritores, mas o Governo também não avançou com a proposta.

Que grupos privados querem sair da ADSE?

Até agora, anunciaram a suspensão das convenções a José de Mello Saúde e a Luz Saúde. O grupo Hospital Privado do Algarve também confirmou que tem a “intenção de efectivar a denúncia” do acordo com a ADSE e esta quarta-feira o conselho de administração do Grupo Lusíadas Saúde anunciou que “está a analisar opções para a cessação das actuais convenções existentes com a ADSE”.

Qual o peso destes grupos?

De acordo com informação fornecida pelos grupos Mello e Luz, mais de 430 mil pessoas recorrem aos seus hospitais através das convenções que têm com a ADSE. Os dados divulgados pela ADSE ao Negócios em 2017 mostram que os grupos com maior peso na facturação apresentada à ADSE são a Luz (22,5), José de Mello (12,9%) e Lusíadas (11,9%).

As convenções podem ser denunciadas a partir de Abril?

A resposta a esta pergunta é difícil de dar, uma vez que as convenções entre a ADSE e os hospitais privados não são públicas e nenhuma das partes as quer divulgar. Cada grupo tem diferentes convenções com a ADSE, que terão prazos de denúncia diferentes. De qualquer maneira, é provável que se inicie uma guerra jurídica neste campo.

Os beneficiários podem continuar a ir a estes hospitais?

Os privados asseguram que até meados de Abril continuará tudo como está. Os beneficiários podem continuar a marcar consultas e a convenção aplica-se às que ocorrerem até 11 ou 14 de Abril (consoante se trate dos hospitais CUF ou Luz). Os tratamentos prolongados já iniciados também se manterão, mesmo que ultrapassem o prazo estipulado. Depois disso, o acesso a estes hospitais será feito ao abrigo do regime livre, em que os beneficiários pagam a consulta e depois a ADSE reembolsa-os.

Há alternativas aos grandes grupos privados?

O PÚBLICO tem questionado insistentemente o conselho directivo da ADSE sobre as alternativas que estão a ser estudadas, mas sem conseguir obter resposta. A rede de prestadores que têm convenção com a ADSE vai além dos grandes grupos e inclui outros hospitais e clínicas, geridos por privados e pelo sector social. Em Lisboa, por exemplo, há convenções com a Fundação Champalimaud, com a Cruz Vermelha, com a Ordem Terceira, com o SAMS, com Alcoitão ou com o Hospital de Sant’Ana.

A que se deve este braço-de-ferro?

A relação entre privados e ADSE começou a azedar quando a ADSE anunciou que pretendia cortar 40 milhões de euros na despesa e começou a negociar as tabelas de preços do regime convencionado para os medicamentos, próteses e cirurgias. O processo teve avanços (fecharam-se alguns preços) e recuos, e pelo meio o Governo tornou imperativa a imposição de limites nos preços. No decurso de todo este processo, mudou a direcção da ADSE e a equipa do Ministério da Saúde.

A gota de água aconteceu em Dezembro, quando a ADSE exigiu aos privados a devolução de 38 milhões de euros que terão facturado a mais em 2015 e em 2016. As chamadas “regularizações” estão previstas desde 2014, mas os privados contestaram-nas em tribunal e o Governo acabou por pedir um parecer à Procuradoria-Geral da República sobre a legalidade desta prática. Esse parecer foi favorável à ADSE, mas os privados entendem que as regularizações retroactivas criam instabilidade na gestão e exigem que a prática seja abandonada

A decisão dos privados é irreversível?

Os grupos, nos comunicados que enviaram à imprensa, mostraram abertura para negociar. Também o CGS, órgão em que estão representados os beneficiários, apelou ao conselho directivo da ADSE e aos privados para retomarem urgentemente o diálogo. O PÚBLICO procurou igualmente saber junto das partes envolvidas se o diálogo será reatado e não teve resposta.

Qual o impacto para os beneficiários?

A saída dos grandes grupos privados é, à partida, prejudicial. Quem desconta 3,5% do salário para a ADSE (um salário de mil euros implica um desconto mensal de 35 euros e num salário de 2500 euros já ultrapassa 85 euros) tem a expectativa de ter acesso a serviços que vão além do SNS, a um preço reduzido. Se a rede da ADSE for mais reduzida e se não forem encontradas alternativas, as pessoas podem ser tentadas a deixar o sistema. É certo que os beneficiários têm sempre a possibilidade de aceder a estes hospitais através do regime livre, mas terão de adiantar o pagamento e pedir depois o reembolso à ADSE. Em todo o caso, e tomando como exemplo uma consulta, o encargo será muito superior aos 3,95 euros que pagam no regime convencionado, uma vez que o reembolso é de apenas 20 euros.

O que perde a ADSE?

A ADSE ao ter um leque mais reduzido de convenções pode tornar-se menos atractiva para os seus beneficiários. Uma vez que a ADSE é opcional e as pessoas têm a possibilidade de sair, há o risco real de quem tem salários mais elevados optar por fazer seguros privados. Até aqui, as saídas voluntárias não têm tido grande expressão. Em 2017 foram 684, o número mais baixo dos últimos quatro anos pelo menos.

Os privados também perdem?

É provável que percam clientes. Uma das razões invocadas pelos privados para a denúncia das convenções é a imprevisibilidade da relação com a ADSE, criticando a correcção retroactiva de facturas, pelo que a perda de clientes poderá de certa forma compensar esta incerteza.

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