Incoerências de uma pandemia

Nós somos o país onde a Festa do Avante vai mesmo acontecer mas onde os doentes internados em hospitais continuam a não ter visitas. Por quanto tempo mais seremos coniventes com isto?

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"Serão cem mil no Avante. E nós, quantos somos?" Pedro Fazeres

Portugal, às vezes, é um país um bocadinho inacreditável. E o mais estranho é que estamos tão habituados à incoerência que, além de a aceitarmos, ainda procuramos justificá-la. Não me entendam mal, eu adoro este país, mas caramba, há coisas aqui que simplesmente não fazem sentido. E quando essas coisas se transformam na enxada que cava ainda mais o fosso existente entre ricos e pobres ou quando são a ferramenta que permite atropelos sistemáticos aos direitos dos mais frágeis, então é impossível permanecer calada.

Reparem, na minha cidade natal as piscinas municipais são uma espécie de ex-libris. E são também as únicas férias de Verão que algumas crianças podem ter. Essas crianças, provenientes de famílias que não têm possibilidades de as levar a fazer férias fora, encontram nas piscinas municipais um perfeito refúgio de Verão sendo que, muitas delas, ou não pagam bilhete ou pagam uma quantia quase simbólica. Este ano, escudando-se na pandemia, a autarquia local decidiu manter as piscinas encerradas. E a esmagadora maioria da população aplaude sem sequer pensar que uns quilómetros mais à frente, para quem puder pagar, há piscinas abertas em hotéis. Pais que possam pagar 40 euros por dia podem levar os filhos a usufruir de piscinas. Pais que não podem… Pois.

O mesmo acontece, por exemplo, com os parques infantis. Na aldeia onde agora resido, com cerca de 200 habitantes e nenhum caso registado de covid-19, o parque infantil está encerrado. Além do sinal de interdição há fitas a delimitar o perímetro ao melhor estilo CSI. Mas nas cidades mais próximas há parques privados de trampolins abertos, há cinemas e bowling à disposição. De quem pode pagar, é claro.

Antes que comece o apedrejamento, eu não sou nem nunca serei negacionista da covid-19. Desde o primeiro momento — quando no norte de Itália a minha irmã médica já vivia um pesadelo —, que defendi que era urgente tomar medidas. Acredito piamente que temos de nos habituar a uma nova normalidade e que, tão depressa, o mundo como o conhecemos não volta. Mas recuso-me a aceitar esta desigualdade. Se é possível que os privados voltem a abrir os seus espaços cumprindo novas normas e regras de segurança, não aceito que o mesmo não aconteça com os espaços públicos sob a alçada de câmaras e juntas de freguesia.

Que se definam lotações, que se reduzam horários de funcionamento, que se intensifique a limpeza de espaços e materiais, que se desloquem funcionários. Mas que não existam dois pesos e duas medidas. Que não se retire às nossas crianças o direito a brincar com medo de perder mandatos nas próximas eleições. Não podemos ser coniventes com este alargamento do fosso entre quem pode e quem não pode pagar.

E quem fala de crianças fala também de doentes ou de idosos. Nós somos o país onde a Festa do Avante vai mesmo acontecer mas onde os doentes internados em hospitais continuam a não ter visitas. Por quanto tempo mais seremos coniventes com isto? Se o argumento é que se fizeram alterações no funcionamento do Avante (que veremos se serão realmente eficazes) então que se façam alterações no funcionamento das visitas em hospitais, que as administrações criem horários de visita desfasados entre serviços, que a visita seja limitada ao familiar de referência e que esse utilize um equipamento de protecção individual adequado.

Há mulheres horas sozinhas em trabalho de parto (lamento muito mas, neste caso, os profissionais de saúde não contam como companhia ainda que façam o seu melhor), há lares sem visitas há meses (e, por falar nisso, lembrem-me de um dia escrever sobre o que se passa realmente em muitos lares deste país), há gente como nós a morrer sozinha. E nós aceitamos isto tudo porque achamos que a pandemia serve de justificação. Até quando?

Fala-se de cem mil pessoas no Avante. Mas ninguém fala nas crianças que passam os meses de Verão trancadas em apartamentos de 80 metros quadrados nem no que sentem os pais que não têm dinheiro para parques de diversões privados ou piscinas de hotel. Fala-se nos shoppings e na necessidade de fazer mexer a economia mas ninguém quer saber das feiras mensais, ao ar livre, que muitas autarquias continuam a proibir e muito menos se fala nas dificuldades que passam essas famílias. Alguém quer saber se as famílias dos feirantes têm comida na mesa?

O maldito vírus veio para ficar e não é aceitável que não nos adaptemos. Desgraçadamente mais depressa nos vejo a todos de máscara na rua (ainda que a evidência científica de benefício seja inexistente) do que vejo resolverem-se as atrocidades e os atropelos aos nossos direitos. Os privados não podem ser os únicos a ter que se adaptar enquanto o Estado e as autarquias vão sacudindo a água do capote.

Serão cem mil no Avante. E nós, quantos somos?

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