Quando cortar o cabelo é recuperar a beleza dos dias

Num terminal rodoviário do Porto, uma barbearia improvisada abriu as portas a pessoas sem-abrigo e com carência financeira. Ao espelho, viu-se a esperança de restaurar a beleza dos dias.

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Adriano Miranda

Patrick Braido achava saber ao que ia. Mas, sentado na cadeira do barbeiro, enquanto lhe davam ao cabelo uma forma arrojada, ia percebendo não saber coisa nenhuma. Antes de cruzar o oceano em busca de uma vida melhor, também ele era barbeiro. E na escola paulista onde aprendeu o ofício, havia volta e meia iniciativas semelhantes àquela em que participou esta quarta-feira. Mas, desta vez, ele estava do outro lado da história. Em vez do pente e da tesoura nas mãos, vestiu a bata de quem precisa de amparo. No Terminal Rodoviário do Campo 24 de Agosto, a empresa de transportes Transdev improvisou um cabeleireiro e abriu as portas a pessoas sem-abrigo e com carência financeira. Patrick entrou: “Só hoje vi o sentimento de quem se senta naquela cadeira”, comentava no final, cabelo rapado dos lados, volumoso e com poupa em cima. “Vir aqui devolve a vontade de continuar.”

Dezembro é mês de sentimentos agitados. Patrick Braido completou 25 anos no dia 10 e tem agora de superar um Natal e passagem de ano longe da família. Há coisa de dois anos arriscou o sonho de uma vida nova no Porto, confiante na profissão para a qual estudara. Prometeram-lhe um lugar como barbeiro, mas boa parte do tempo viu-se limitado à função de varrer o chão. Em Portugal, percebeu, a confiança e fidelidade dos clientes era mais difícil de conquistar. Ao fim de dois meses, desistiu. Procurou outras formas de se manter: foi agente comercial numa empresa de telecomunicações, depois numa imobiliária. Passou pela restauração. Agora está desempregado, sem qualquer rendimento ou apoio. Viveu num carro durante nove meses. Há semanas foi morar “de favor” para a casa vazia de um conhecido.

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Patrick Braido, 25 anos, era barbeiro no Brasil Adriano Miranda

Sónia Pinto acelera o passo à saída do cabeleireiro improvisado no terminal rodoviário. Na mão, leva uma senha que lhe dará direito a um galão e um pão com manteiga, cortesia do café Terminal 24, que ao perceber a acção solidária a poucos metros dali se deixou contaminar. No cabelo negro, Sónia tem agora duas tranças impecavelmente desenhadas por uma das voluntárias do Centro de Formação Certificada. Não quer fotografias do rosto, mas do penteado sim. Tranças como aquelas só tinha feito uma vez em 40 anos de vida, para ir a um casamento. A iniciativa conheceu-a através da Casa – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, onde volta e meia vai fazer uma refeição.

Na sua casa de poucos metros quadrados, numa ilha na zona oriental do Porto, vai-se mantendo com os menos de 200 euros do Rendimento Social de Inserção. Ficou desempregada há já oito anos e nunca mais conseguiu recompor-se. A filha adolescente está à guarda do pai, visita-a de 15 em 15 dias. Ela mora sozinha, com o aconchego dos vizinhos. Às vezes, imagina como seria a vida se o sonho dela tivesse um dia ganhado asas (“queria ter sido educadora de infância”) e dá conta do abismo entre anseios e realidade. Mas não se deixa levar em lamentos: “Pago 50 euros de renda e sou muito poupadinha. Vai dando para viver”, diz, para logo fazer um reparo em forma de prece: “Devia haver mais apoios.”

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Sónia Pinto fez tranças pela segunda vez na vida Adriano Miranda

Jason Parodi vive sem nenhum. Nascido no norte de Itália há 35 anos, mudou-se para o Porto há meia dúzia de meses, seduzido pela fama da cidade. Quando cruzava a fronteira de Espanha com Portugal encontrou uma cadela abandonada e fez dela companhia de viagem: “Não podia deixá-la na rua”, afirma categórico. Índia, coleira vermelha com bolinhas pretas, espera sentada numa manta à porta do barbeiro enquanto ele se entrega nas mãos de uma voluntária. “Isto é importante, estava a precisar de cortar o cabelo e de um saco-cama”, comenta num português com pouco sotaque, feliz com a dupla oferta da iniciativa da Transdev, que também já tinha acontecido em Coimbra.

Durante o Verão, Jason juntava alguns trocos a fazer bolas de sabão gigantes na Rua das Flores. Agora que o tempo se pôs invernoso, o negócio não dá para quase nada. Com Índia, improvisa a sua casa sem paredes e tecto nas ruas do Porto. Pede esmolas para se alimentar, frequenta associações. Se não encontrar emprego nos próximos meses, tentará a sorte na capital. Depois, rumará ao norte de Espanha, onde chegou a trabalhar como empregado de mesa.

Italiano Jason Parodi vive nas ruas com a cadela Índia Adriano Miranda
Pelo terminal rodoviário do Campo 24 de Agosto passaram 52 pessoas Adriano Miranda
Iniciativa da Transdev já tinha acontecido em Coimbra Adriano Miranda
Pessoal do Centro de Formação Certificada ofereceu os seus serviços a quem quis cortar o cabelo ou fazer a barba Adriano Miranda
Patrick veio do Brasil e não pensa voltar: "Ainda vou dar a volta", acredita Adriano Miranda
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Italiano Jason Parodi vive nas ruas com a cadela Índia Adriano Miranda

Num jantar numa associação, Artur Moreira ouviu falar da iniciativa solidária desta quarta-feira e memorizou a data. Era dia de ir ao cemitério compor a campa da esposa e, estando ali perto, decidiu sentar-se na cadeira. Jura que não é por necessidade, ou não fosse a filha cabeleireira, mas por um reverso acto solidário: “Assim as meninas podem treinar”, conta sorridente. Litógrafo de profissão, Artur Moreira trabalhou num serviço da Câmara do Porto por quase 20 anos: atendia telefones, fazia recados, era o homem para toda a obra. Quando a mulher adoeceu, reformou-se para cuidar dela na ilha onde viviam, na Rua de São Victor. “A médica dizia-lhe: oxalá o seu marido tenha alguém que olhe por ele como ele olha por si agora.” Para o Machado Vaz, um “bairro de categoria” onde habita agora, leva sempre que pode alguns mantimentos dados pelas associações. “Temos de nos ajudar uns aos outros.”

Para os 52 sem-abrigo e gente com carência que passaram pelo barbeiro do terminal rodoviário, ainda falta um plano de vida. Mas, ao espelho, o cabelo e barba feitos podem ser por um instante a ilusão de uma vida reinventada. “Vaidosa” assumida, Sónia Pinto já se sente “mais bonita” na hora da despedida. E Patrick Braido, 25 anos, não deixa cair o sorriso. Agora que cruzou o oceano, não vai voltar atrás. “Sou muito novo, ainda vou dar a volta”, diz. E um dia, quem sabe, poderá concretizar o sonho de abrir uma taberna, com comida rápida e bebida farta: “Sempre vi os donos de tasco tão felizes, só sonho ter a felicidade deles.”

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