Estátuas de Lisboa: “Tem de haver debate, tem de haver discussão”

Um projecto digital do Teatro do Bairro Alto nasce no preciso momento em que a conversa sobre estátuas e símbolos está na ordem do dia. A fotomontagem, a ficção e o humor podem ser novas ferramentas.

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Parte do Padrão dos Descobrimentos encaixotado, a fazer lembrar as bagagens que trouxeram os retornados Isabel Brison

Camões fartou-se. Durante anos assistiu impotente à popularidade de Pessoa, sempre rodeado de gente, sempre requisitado para fotografias e gracinhas. Um dia desapareceu do alto da coluna e deixou os companheiros a especular. “Onde é que ele se meteu?”, pergunta um. “Parece que andava um bocado em baixo…”

Para saber como acaba esta história será preciso acompanhar o projecto que esta terça-feira é lançado pelo Teatro do Bairro Alto. Chama-se Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense e surge sob a forma de um site onde a artista visual Isabel Brison olha para as esculturas da cidade e imagina-lhes novos futuros.

Um Camões desaparecido, um Padrão dos Descobrimentos encaixotado, um Marquês de Pombal encostado a um canto. As fotomontagens de Isabel Brison começaram como “uma brincadeira” e o seu primeiro objectivo é que “as pessoas se divirtam e tenham uma boa experiência”, diz a artista.

Mas o projecto nasce no preciso momento em que a discussão pública sobre estátuas e símbolos do passado está ao rubro. A representação do Pe. António Vieira no Largo de São Roque, os brasões florais na Praça do Império ou o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo ao lado, tornaram-se matéria de conversa polarizada.

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E se todas as estátuas fossem tiradas do espaço público, o que lhes faríamos? Isabel Brison

“Parte da polarização surge porque não se fala sobre isto, parece que temos medo de discutir estas coisas”, diz Isabel. “Eu nunca disse e não vou dizer que devemos dinamitar o Padrão dos Descobrimentos”, mas “tem de haver debate, tem de haver discussão.” A criadora compara essa necessidade à arrumação de uma casa, em que inevitavelmente “há decisões difíceis que têm de ser tomadas”.

Isso não significa que tudo deve ser mantido ou que tudo deve ser demolido. “O espaço é de todos, é público, tem de se ajustar à medida das nossas necessidades, se elas mudam é natural que o espaço mude. E conseguimos fazer isso tendo respeito pela História e sem apagar nada”, afirma.

Ana Bigotte Vieira, programadora do Teatro do Bairro Alto, sublinha o bom humor que perpassa pelo trabalho de Isabel Brison. “Esse olhar sobre as estátuas, parecendo naïf, é bastante profundo. Ela personifica as estátuas e faz-nos olhar para elas a partir do seu ponto de vista”, explica. Este pode ser um ingrediente fundamental “para melhorar a qualidade dos debates e também para os relativizar”, diz Ana Vieira, considerando que a discussão sobre este assunto “está muito polarizada e muito básica”.

Quando imagina as estátuas citadinas em espaços rurais ou as substitui por árvores e vegetação, Isabel Brison “tenta retirar alguma monumentalidade” aos espaços que elas ocupam, recordando que a cidade não é imutável. “Há uma reacção muito emocional das pessoas que tem a ver com o facto de as estátuas estarem num espaço e considerarmos que são nossas, pois conhecemo-las desde sempre”, diz.

Outras vezes, como fez com a estátua As mulheres portuguesas gratas a Salazar, de Leopoldo de Almeida, tirou-as do depósito em que realmente se encontram para as colocar num imaginário jardim. “Se essa escultura não tivesse sido decapitada, será que ainda lá estaria? É uma escultura feminina. Tenho a impressão de que se não tivesse sido vandalizada [depois do 25 de Abril] ainda lá estaria, com outro nome”, pondera.

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Decapitada depois do 25 de Abril, a escultura de Leopoldo de Almeida está guardada num depósito. Poderia regressar ao espaço público? Isabel Brison

Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense estreia-se agora mas é projecto para se prolongar pelo resto do ano, com lançamento de novas páginas em Junho e Outubro. Ana Bigotte Vieira adianta que ainda haverá uma conferência. “Isto dá pano para mangas”, comenta. 

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