A casa amarela de Ariadne no país onde todos pedem e ninguém dá

Na Grécia há pais a deixar crianças em instituições porque não têm dinheiro. Há hospitais a recusar entregar recém-nascidos enquanto as mães não pagarem a taxa de parto. Pessoas e associações fazem o que podem para ajudar.

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Entramos. A casa é um caos de instrumentos, livros, papéis, algaraviada e música. Na sala de Ariadne Westerkamp, Eleni, olhos azuis brilhantes, martela no piano. É o fruto de cinco meses de aulas, e ela já sonha com uma carreira de palcos e holofotes. Se não conhecesse a professora, nada disto seria possível, diz. A família não teria dinheiro para aulas de música.

Na Grécia há muitas pessoas, anónimas, que vão dando vários tipos de ajuda – enquanto elas próprias são também por vezes ajudadas. Ariadne Westerkamp, holandesa com nome de grega e marido grego, é um exemplo disso mesmo: como a definir? É a soprano que criou uma página na Internet para recolher fundos através da música? É a mãe de cinco filhos que quando o marido esteve oito meses com salários em atraso recebeu dinheiro de amigos alemães? É a professora de música do liceu que agora é professora primária porque foram anunciados cortes em todas as disciplinas de “artes”, da música à educação visual, passando pelos trabalhos manuais? É a vizinha que acaba por ajudar quem mais precisa no seu bairro? Ou é ainda, e no dia em que a encontramos está neste papel, a professora que dá aulas de música gratuitas a crianças da sua escola?

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Ariadne Westerkamp com o mais novo de cinco filhos Joana Bourgard

Quem vê de fora a casa amarela também não sabe que as duas vizinhas de Ariadne, que moram no andar de baixo, não têm dinheiro para mais nada a não ser pagar a casa e os remédios da mãe, que tem uma doença de coração. Por isso, quando vai às compras, Ariadne traz também comida para as vizinhas. “Seria desumano não o fazer”, diz.

Ariadne está ainda em contacto com uma organização de moradores do bairro que tentam identificar casos extremos em que seja preciso apoio. Um dos últimos envolveu uma grávida que precisava de mais do que a refeição quente diária que comia na igreja. Ariadne acabou por a ajudar, e quando ela teve o bebé na maternidade pública, houve um problema: não tinha dinheiro para pagar a taxa do parto, cerca de 350 euros. “A maternidade recusava-se a dar-lhe os papéis do bebé enquanto ela não pagasse”, conta Ariadne. “Por isso eu paguei.”

Uma situação absurda: “Eles já têm muitos bebés que lá ficam, não porque as mães não possam pagar, mas porque as mães se vão embora porque não podem tratar deles”, comenta (os números do Ministério da Saúde mostram um aumento de mais de 300% de recém-nascidos abandonados nos hospitais da capital desde 2011).

Ariadne não voltou a ter notícias dessa mãe e do bebé. “Tenho a sensação de que se mudou.” Não a incomoda não saber nada dela, que se tenha ido embora sem dizer nada a quem a ajudou? Ela olha como quem tem de explicar algo óbvio: “Pode ser que não tenha podido pagar mais o telefone, ou tenha sido obrigada a mudar-se à pressa por não poder pagar a conta da electricidade. Há situações muito difíceis.”

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Desempregados sem seguro de saúde

A taxa de parto que Ariadne pagou é uma das pontas do icebergue de uma questão pouco compreendida na Grécia. É que quem não tem emprego não tem seguro de saúde passado um ano. Há entre 1,9 e 2,4 milhões de gregos sem seguro, segundo o Ministério da Saúde – mais do que só o número de desempregados. Também há casos de pessoas, como o marido de Ariadne, que têm emprego mas a quem os empregadores não pagam o seguro. “Há quatro anos que está sem seguro.”

Os hospitais dizem que tratam urgências. Mas doenças como o cancro não são urgências. Partos não são urgências – há relatos tanto de mulheres a bater à porta de vários hospitais, depois de serem recusadas pelos que exigem o pagamento antecipado do parto, até a histórias como a da grávida que Ariadne ajudou, de não darem alta aos bebés ou não entregarem os seus documentos enquanto não for paga a taxa.

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Joana Bourgard

Como professora, Ariadne nota ainda outro efeito da crise: “Antes, tinha uns três miúdos problemáticos. Agora tenho dez”, conta – isto em turmas de 20. “Há muita tensão: toda a gente está a pedir e ninguém está a dar”, comenta. Mais uma vez, a música ajudou: começou por convidar os mais problemáticos para as aulas de música, e “resultou muito bem”.

Na sala de Ariadne há um ar de desafio. A página que criou, em que compositores e músicos de todo o mundo podem mandar peças ou temas já gravados – We Care about Greece (www.musiccareaboutgreece.com) –, tem como objectivo recolher fundos, mas também chamar a atenção para alguns preconceitos que ainda existem sobre a Grécia. Ariadne, nome grego, é holandesa, casada com um grego, a viver em Atenas (a família mudou-se depois de alguns anos em Berlim), e conta como teve sorte em ter amigos alemães que, quando a família precisou de ajuda, lhes deram também algum dinheiro. “Temos tanta sorte por ter amigos na Alemanha... Porque o dinheiro que pagamos para os impostos e daí para os bancos e daí para a Alemanha – e nós recebemo-lo da Alemanha outra vez”, diz, soltando uma sonora gargalhada.

Para ela, o que faz é serviço público. Especialmente as aulas de música. “Apesar da crise, temos de tentar dar alegria às pessoas, especialmente às crianças.” E no meio do caos dos papéis e das notas ainda marteladas (bem depressa, como gostam os principiantes), é isso que está a acontecer com Eleni e Ariadne na caótica sala do prédio amarelo.

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Aldeia SOS nos arredores de Atenas Joana Bourgard

“Por favor, fiquem com o meu filho”

“Agora já não apoiamos só o Estado”, comenta Stergios Sifnios, director dos serviços sociais das Aldeias SOS na Grécia. “Fazemos muitas das coisas que são responsabilidade do Estado.”

Um dia aconteceu, conta Sifnios, na sala de jogos soalheira da Aldeia SOS de Vari, nos arredores de Atenas: chegou um pedido de ajuda de uma mãe que pedia para deixar o seu bebé numa aldeia SOS, porque não tinha dinheiro para cuidar dele. Depois veio um casal com o mesmo problema. E outro ainda. “Ainda aceitámos duas ou três crianças, mas tornou-se óbvio que esta não era a solução”, diz Sifnios.

O responsável não tem dúvidas de que este é um efeito da crise: estes pedidos começaram em finais de 2010 e tinham que ver exclusivamente com problemas financeiros, muito graves, das famílias. “Foi a primeira vez que nos chegou algo assim”, nota Sifnios.

“Há um perigo muito grande se a família tem de dar a criança a uma instituição por não ter dinheiro”, diz ainda o responsável. Por isso, as aldeias SOS começaram um “programa de fortalecimento da família”, em que ajudam com tudo o que podem – de bens materiais como comida e roupa a apoio psicológico a pais e filhos – para evitar que as crianças saiam da casa da família. “Um dia sequer longe da família é mau.”

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Café no centro de Atenas onde se pode deixar pago um café para alguém, que não o possa pagar, beber mais tarde Joana Bourgard

Não é que os pedidos tenham entretanto desaparecido. A resposta que a instituição dá é que é diferente. Agora, quando chegam pais desesperados a pedir para as crianças ficarem temporariamente numa das Aldeias SOS, são reencaminhados para um dos seis centros que têm este serviço. “Em 99% dos casos, resulta”, garante Sifnios. Através do programa, são actualmente apoiadas 1500 famílias e mais de 2500 crianças, diz. As Aldeias SOS continuam assim para o que foram criadas – crianças sem família ou que estariam sujeitas a maus tratos ou negligência.

Mas enquanto políticos acenam com previsões optimistas para a situação grega, os responsáveis das Aldeias SOS preparam-se. “Acreditamos que a crise ainda vai durar um bom tempo. Por isso temos de planear.”

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Crianças brincam na Aldeia SOS Joana Bourgard

Um novo projecto é mesmo uma casa, em Creta, para crianças que precisem de cuidado de curto prazo, por exemplo em que os pais tenham ficado desempregados e sem casa e procurem entretanto outra casa. “A ideia é que não fiquem lá mais de um ano.”

Não deixa de ser impressionante que o responsável fale deste projecto depois de ter passado parte da entrevista a explicar porque é que as Aldeias SOS tinham deixado de aceitar crianças nesta situação. Mas com 60% de jovens desempregados, há um número muito grande de jovens pais em que ambos não têm rendimento. E os avós também já não podem ajudar. “A coisa mais importante na Grécia – a família apoiava os jovens – desapareceu. Se os jovens não trabalham, e 60% não trabalham, se tiverem filhos é muito difícil.” Há casos dramáticos de pessoas que ficam sem casa de um momento para o outro, e é para esses casos que este alojamento de curto prazo pode funcionar.

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Joana Bourgard

Esta é a quarta de 11 paragens na Europa que vai a votos. Amanhã, Sófia.

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