A Europa democrática: a nova utopia?

Entre os riscos que a Europa corre, o maior será "o desenvolvimento do egoísmo alemão", escreve o ex-director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia e actual comissário das conferências de Serralves "Tendências Mundiais 2030"

Reuters

A utopia europeia está hoje ameaçada e há um risco real de desintegração da União. O nacionalismo está a renascer, um pouco por toda a parte, como está bem patente na reacção dos Estados membros às graves crises que a Europa enfrenta, desde o euro aos refugiados.

O nacionalismo identitário assume hoje formas brutais na Europa Central e de Leste, aonde não chegou a ser deslegitimado, pois ao contrário dos europeus do sul, que chegaram à União depois de décadas de ditaduras nacionalistas, a leste o que estava em causa era a luta pela libertação nacional, contra a opressão imperial.

Nos países fundadores, o nacionalismo ressurge nos partidos políticos de extrema-direita, islamofóbicos e anti-imigrantes e, o que ainda é mais grave, banaliza-se em sectores influentes dos partidos democráticos. A guerra de Hollande contra o terrorismo é herdeira da estratégia de guerra de Bush e não das grandes manifestações contra a guerra no Iraque que levaram Habermas e Derrida a afirmar que estava a nascer um espaço público europeu, pacifista, assente nas trágicas experiências das guerras intra-europeias e das guerras coloniais.

Mas talvez ainda mais preocupante para o futuro da utopia europeia seja o desenvolvimento do egoísmo alemão. É uma forma soft de nacionalismo, muito menos xenófobo do que nos seus vizinhos, que se traduz na progressiva libertação da Alemanha dos constrangimentos da União e na sua afirmação como potência emergente, um parceiro estratégico das outras grandes potências. A tendência mundial para o policentrismo, que acarreta o aumento do espaço de manobra das potências médias, irá aprofundar a capacidade da Alemanha para agir em função dos seus interesses, independentemente da convergência com os restantes Estados membros.

Com a reafirmação da centralidade dos Estados membros, o intergovernamentalismo passou a dominar o processo de tomada de decisão na União, enfraquecendo a Comissão Europeia. Os poderes que o Parlamento Europeu foi conquistando ao longo do tempo ainda não são devidamente utilizados, sendo claramente insuficientes para travar a deriva intergovernamental.

Os cínicos não têm estados de alma com o risco de fracasso da utopia europeia pois pensam que só os interesses egoístas movem os homens e os Estados e nunca acreditaram numa política pós-soberana. Se a utopia europeia nunca foi fácil, continua, mesmo assim, a ser possível, desde que se ultrapasse uma lógica meramente inter-estatal e se construa uma União que coloque os cidadãos no centro.

Os cidadãos da União têm plena consciência que políticas centrais para os seus interesses fundamentais são hoje decididas a nível europeu e não a nível nacional – que o digam os portugueses, os espanhóis ou os gregos. Mas também sabem que a sua capacidade para influenciar as decisões é muito reduzida, como aprenderam brutalmente os cidadãos gregos. Paradoxalmente, é nesta consciência do défice democrático da União que se encontram condimentos de uma nova utopia. Uma utopia que corte radicalmente com a perspectiva vanguardista, que desconfia dos cidadãos e coloca toda a confiança nos tecnocratas e nos especialistas. Tanto a utopia comunista como a utopia europeia foram executadas por vanguardas iluminadas. Se no primeiro caso tal era assumido frontalmente no conceito de partido de vanguarda, no caso europeu conhecemos um processo liderado pelos grandes funcionários europeus que, desde Jean Monnet, assumiram a condução da integração. Até Maastricht foram alvo de escassa contestação, mas a partir de 1992 passaram a ser acusados, por sectores cada vez mais numerosos, de porem em perigo as democracias nacionais e a coesão social. Esta recusa do vanguardismo encontrou refúgio nos referendos aos tratados, que passaram a ser o terror dos dirigentes europeus.

Era claro a partir de Maastricht que a democracia nos Estados membros já não bastava para garantir a realização da utopia da paz na Europa : era imperativo que a União também fosse democrática.

A crise económica e financeira expôs ainda mais a esquizofrenia institucional da Europa, com instituições criadas fora dos tratados, como o Eurogrupo, a colocarem Estados membros sob tutela. A crise do euro transformou-se, assim, numa crise política e democrática. A crise da democracia está na origem da recomposição política a que assistimos na Europa e que contém em si os elementos de uma nova utopia – a da Europa democrática –, que poderá salvar a integração europeia do fracasso. Isto mesmo já tinha previsto Dominique Wolton, em 1993, num livro intitulado A última utopia – O nascimento da Europa democrática: “A Europa política é a última utopia, a única aventura política de monta deste fim de século (...). A hostilidade que criará o seu fracasso só terá paralelo com as esperanças e os afectos que nela foram depositados após 1945”. Para sobreviver, a União Europeia tinha que por fim à Europa burocrática e construir uma Europa dos cidadãos, onde estes pudessem ser do contra, exercendo o seu direito democrático de crítica e oposição às políticas da União sem serem quase automaticamente rotulados como anti-europeus.

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