A mãe de todas as incertezas

O maior problema que o mundo enfrenta (e, por maioria de razão, os aliados europeus e asiáticos) não é a “mãe de todas as bombas” mas a “mãe de todas as incertezas”.

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1. Com a primeira volta das eleições presidenciais em França a uma semana de distância, o tema passou a ser “impossível”. Há quatro candidatos nos últimos 100 metros, cada um com idêntica possibilidade de passar à segunda volta. Imagina--se o nervosismo dos governos europeus perante este grau de imprevisibilidade e as consequências que poderá vir a ter. Segue-se o outro assunto da semana, sobre o qual também não é fácil escrever. A pergunta é simples: qual é, afinal, a política externa e de segurança de Donald Trump? Pensávamos que sabíamos. Enganámo-nos. O caso é sério, porque diz respeito ao país mais poderoso do mundo, cujas decisões, boas ou más, acabam por afectar o mundo inteiro. O Presidente americano queria acabar com essa velha responsabilidade que a América carrega aos ombros de ser o “polícia do mundo”, incluindo no melhor sentido da frase. Há já algum tempo, um conselheiro de Hillary Clinton exprimia de uma forma simples esta responsabilidade americana, sintetizando o que a maioria dos visitantes transmitia à secretária de Estado: “Temos um problema, como é que tenciona resolvê-lo?”

Trump prometeu acabar com este estado das coisas. É verdade que uma das suas primeiras decisões foi aumentar em 10% o orçamento do Pentágono, já de si gigantesco em termos comparativos com qualquer outra potência mundial. Esta decisão, somada ao corte de 36% do orçamento do Departamento de Estado, incluindo a ajuda humanitária e ao desenvolvimento, podia ser uma indicação sobre a forma como Trump via a relação dos EUA com o mundo, funcionando como uma medida de dissuasão generalizada. A surpresa começou com os 59 mísseis de cruzeiro lançados contra a base aérea síria de onde partiu o ataque químico à população civil. Foi uma decisão tomada em menos de 48 horas pela qual ninguém esperava. Os aliados europeus não estavam em condições de a criticar por causa das imagens que o mundo contemplou e porque sempre defenderam que Assad não podia fazer parte de uma solução para a Síria. O Presidente americano informou o seu homólogo chinês, de visita à Florida, enquanto ambos saboreavam “o melhor bolo de chocolate do mundo”. Os mísseis não pareceram perturbar a visita de Xi.

A Coreia do Norte foi com certeza um tema central. Antes de a visita começar, o recado de Trump era simples: se a China não fizer nada, faremos nós. XI ensinou-lhe alguma coisa, como o próprio reconhece em entrevista recente ao Wall Street Journal, quando refere a magnitude dos problemas que tem pela frente e com a qual não contava. Acreditava que a China poderia, se quisesse, resolver sozinha o problema da Coreia do Norte, até o Presidente chinês lhe explicar que era muito mais complicado. Obama manteve a política da “mútua dissuasão”, sem conseguir uma aberta para voltar a uma qualquer forma de negociação. O avanço de um porta--aviões americano, mais a sua frota de combate, para próximo da Coreia do Norte pretendia avisar que Washington não falava por falar. Obama alertou inúmeras vezes a equipa de transição do seu sucessor de que os cenários elaborados pela sua equipa previam que o mais provável não seria um míssil de longo alcance dotado de uma ogiva nuclear mas um ataque convencional a Seul. Hoje, uma guerra passou à categoria de improvável, mas não impossível. A China não esconde a preocupação, depois de ter acreditado que lhe seria fácil ocupar no Pacífico o lugar que Trump provavelmente deixaria vago. Qualquer boa relação entre Xi e Trump, eventualmente conseguida na Florida, será bem-vinda para evitar o pior. É também prudente lembrar que o líder norte-coreano é ainda mais imprevisível do que Trump. Pode sempre achar que não tem nada a perder.

2. Entretanto, o exército norte-americano no Afeganistão resolveu utilizar a mais poderosa bomba convencional do seu arsenal — a “mãe de todas as bombas” — para atingir os túneis do Daesh nas montanhas afegãs. Porquê agora? Os analistas militares dizem que a presença do Estado Islâmico no Afeganistão já tinha começado a cair acentuadamente durante o ano passado. A decisão, autorizada pelo Presidente, pode fazer parte do planeamento militar americano no país, que continua mergulhado no caos ao cabo de uma guerra que já dura há 16 anos.

Finalmente, a última mudança brusca de Trump em matéria de política externa diz respeito à NATO e é, talvez, a melhor. O secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, esteve na Casa Branca para ouvir o Presidente garantir-lhe que já não considera a NATO obsoleta. “Considerei, mas já não considero.” A mudança terá um custo que Stoltenberg deixou passar nas entrelinhas: adaptar a NATO às prioridades de Trump, incluindo o combate ao terrorismo. A presença de tropas americanas na Polónia e nos bálticos para dissuadir qualquer aventura de Putin vai manter-se.

Falta a conclusão: o que explica estas mudanças?

3. Alguns analistas americanos dizem que podem resultar da liberdade dada pelo Presidente aos militares, pelo menos quanto às decisões no terreno. “Ele tirou a trela aos militares”, escreve Simon Tisdall no britânico Guardian. Trump colocou generais em três dos postos principais da sua Administração: o chefe do Pentágono, o chefe da Segurança Interna e o seu conselheiro nacional de segurança. Uma concentração raramente vista no passado. “Na medida em que há um grande número de militares, acabamos por obter respostas que correspondem apenas a considerações militares, mas não a considerações diplomáticas”, diz Alice Hunt Friend do Centro de Estudos Internacionais e de Segurança, um think-tank americano. A única observação que é possível fazer é que estas decisões de Trump não andam muito longe do que poderia ser a doutrina dos falcões do Partido Republicano, incluindo figuras como a de John McCain, uma das vozes mais críticas da actual Administração. Em 2008, quando concorreu contra Obama para a Casa Branca, deixou uma frase inesquecível sobre o Irão: “Bomb, bomb, bomb.

4. Se pensarmos em termos estratégicos, a grande mudança pode resumir-se, por enquanto, à mudança de lugar entre a China e a Rússia. A China, apresentada como o “inimigo número um” da América durante a campanha (por razões fundamentalmente económicas), parece merecer hoje de Trump um tratamento muito distinto. O Departamento do Tesouro acaba de dizer que Pequim não manipula a moeda para obter vantagens (aliás, nenhum outro país vai ser acusado de manipular a sua moeda). O trade-off entre Trump e Xi pode ter passado pelo abandono da ameaça de aumentar as tarifas aduaneiras aos bens importados da China a troco de maior cooperação sobre a Coreia do Norte. O que pensa Pequim sobre isto ainda é difícil de saber. A China funciona a longo prazo e não gosta de surpresas. Vladimir Putin, pelo contrário, está em risco de deixar de ser um potencial aliado de Trump, o candidato, para passar a estar sob a mira de Washington por causa da Síria. Mais uma vez, a visita de Rex Tillerson a Moscovo deixou muitas zonas de sombra. O seu homólogo russo, Serguei Lavrov, foi muito pouco diplomático para com o seu homólogo americano durante a conferência de imprensa com que terminou o encontro. O antigo CEO da Exxon-Mobile, habituado a lidar com os russos nos negócios do petróleo, pareceu muito pouco experiente em andanças diplomáticas. Mas isso quer dizer muito pouco. Falta ainda saber o que a nova Administração tenciona fazer com o Irão. Trump, o candidato, considerou o acordo nuclear negociado por Obama como o pior de sempre. Razão suficiente para mais uma frente de conflito? Resta uma conclusão possível: o maior problema que o mundo enfrenta (e, por maioria de razão, os aliados europeus e asiáticos) não é a “mãe de todas as bombas”, mas a “mãe de todas as incertezas”. Nada que nos permita ficarmos tranquilos com o eventual regresso da América.

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