Da ambição republicana à tragédia fascista: os trilhos do fracasso de Portugal

O historiador Filipe Ribeiro de Meneses traça as origens do mau desempenho do Corpo Expedicionário Português na frente ocidental na batalha de La Lys, em França.

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O historiador português Filipe Ribeiro de Menezes Rui Gaudêncio/PÚBLICO/Arquivo
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Postal com o general Tamagnini de Abreu, comandante do CEP DR

Portugal foi um dos países que entraram na Grande Guerra de 1914-1918, mas, ao contrário das outras nações que foram sugadas para este conflito mortífero, fê-lo não para defender território, mas para tirar proveito político. “Seria uma forma de fortalecer o regime: esperava-se uma onda de patriotismo de que beneficiaria a República, que não estava a ter tanto sucesso como se esperava”, explica o historiador Filipe Ribeiro de Menezes. Por isso, o segundo Governo de Afonso Costa, em 1916, procurou um pretexto válido para declarar guerra à Alemanha e levar um exército português para França — o Corpo Expedicionário Português (CEP).

“A beligerância foi identificada como necessária, desejável. Na apreensão dos navios alemães refugiados em águas portuguesas, a 23 de Fevereiro de 1916, encontra-se a forma. Mas andavam à procura de outras: o ministro alemão em Lisboa ainda não tinha apresentado os cumprimentos a Bernardino Machado pela eleição presidencial, e vê-se o Governo português a tentar explorar esta questão”, explica o professor de História na Universidade de Maynooth, na Irlanda, e autor do livro De Lisboa a La Lys — O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial (D. Quixote).

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“A participação portuguesa na guerra é excepcional a nível europeu, porque quase todos os outros países que se envolveram estavam directamente expostos ao inimigo. Portugal não; tinha a França inteira e depois tinha uma Espanha pelo meio a separá-lo da contenda e que nem sequer estava na guerra. Por isso, não estava em jogo a sobrevivência do país. Tem mais que ver com as intervenções de países longínquos, como os EUA, ou o Brasil, ou o Japão. Países que escolhem entrar na guerra e depois têm a liberdade de determinar o nível da sua contribuição. Mas isso também cria entre muitos a sensação de que está a contribuir demasiado, de que não havia necessidade”, explica o historiador.

Mas esta não foi uma aposta ganha. Foi mais um tiro que saiu pela culatra — era preciso o apoio britânico para enviar tropas portuguesas para combater na paralisada frente ocidental, em França. “Como é que se consegue conquistar a independência tornando-se mais dependente? Isso não foi entendido até ao Outono de 1917, quando o CEP já lá estava há quase um ano”, contou Ribeiro de Meneses.

O CEP foi colocado sob o comando do 1.º Exército Britânico e os militares portugueses ficariam dependentes do Reino Unido para tudo: “Eram alimentados, pagos, municiados, treinados, equipados pelos britânicos. Quantos mais portugueses fossem para França, maior seria a necessidade de uma boa relação com os ingleses”, explicou.

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Desfile dos soldados portugueses em Paris, ao chegaram a França DR

Só que a relação das chefias militares portuguesas com os seus congéneres britânicos revelou-se difícil. Os soldados eram bons, fortes e gostavam de aprender, diziam os generais de Sua Majestade, embora precisassem de formação. Não estavam treinados para a “guerra moderna, que era a ‘guerra de atrito’, de defesa, faltava-lhes espírito ofensivo”, mostravam “desconhecimento real ou fingido dos motivos que levaram Portugal a estar em guerra”, como relatava o general Richard Haking. Os oficiais evadiam-se das suas responsabilidades e, minados pelas divisões da política caseira, não se importavam com o bem-estar das suas tropas.

O que era preciso, consideravam as chefias britânicas, era pôr oficiais ingleses a comandar soldados portugueses. Como tinha acontecido há um século, nas Guerras Peninsulares, que tinham sido um triunfo para Wellington face aos generais de Napoleão.

“Só que esta era uma linha vermelha que os militares portugueses estavam determinados a não cruzar jamais”, diz Filipe Ribeiro de Meneses. “Wellington era visto como um deus da guerra pelos britânicos. A receita dele para garantir a cooperação militar com os portugueses foi naturalmente vista um século depois como um modelo”, explica.

Mas em Portugal a recordação era diferente. “Não é que tivesse corrido mal, mas tinha deixado um travo amargo no Exército português. Tinha ficado a ideia de que menosprezou o talento militar dos portugueses. O esforço militar português foi a tal ponto confundido com o britânico que a participação nacional nas Guerras Peninsulares praticamente tinha desaparecido aos olhos do mundo”, explica o historiador.

Há um problema de orgulho ferido dos militares portugueses. “Por isso, logo em 1916, numa muito longa entrevista, Afonso Costa fala das condições em que o exército vai combater em França. Diz que estará lá em pé de igualdade absoluta com o Exército britânico e o francês, que haverá coordenação entre os estados-maiores, mas que ninguém nos vai dar ordens, teremos uma força completamente independente e autónoma. O que não é verdade. Está muito longe de o ser.”

No entanto, a ambição é exactamente essa: “Garantir que o esforço de guerra português tenha a maior visibilidade possível em todo o mundo, para daí tirar dividendos políticos. É por isso que Portugal vai à Grande Guerra.”

Aquilo que os britânicos vêem como desejável, a integração das tropas portuguesas sob o seu comando, que seria a melhor forma de tirar partido do que consideram ser pontos fortes dos portugueses, é algo que não interessa a Portugal — nem ao Exército nem ao Governo.

“Quando os portugueses começam a resistir às pretensões britânicas, a recusa é interpretada tal como no tempo de Wellington: é o orgulho desmedido dos portugueses. Os soldados são bons, são prestáveis, corajosos, gostam de aprender, são espertos, mas os oficiais não prestam. São minados por rivalidades e querelas e um orgulho que os impede de perceberem o que é bom, o que é preciso fazer e como contribuir para a vitória”, sintetiza Ribeiro de Meneses.

E assim começam os mal-entendidos culturais que hão-de marcar toda a história do CEP e levar os generais britânicos a pintar com as cores da vergonha o desempenho dos soldados portugueses na única batalha em que participaram, a de La Lys, a 9 de Abril de 1918, que para os alemães se chamava Operação Georgette, e os britânicos conhecem como batalha de Estaires.

La Lys não é um local no mapa, é um rio, na plana Flandres francesa, onde as casas são de tijolo escuro e a terra é alagadiça. Mas ficou conhecido, em Portugal, como o nome de uma batalha da Primeira Guerra Mundial, quando o conflito já se aproximava do fim.

Naquela madrugada de muito nevoeiro, de um Inverno anormalmente pouco chuvoso, em que a terra habitualmente quase pantanosa estava seca, ajudando ao avanço dos alemães, os gases tóxicos dos alemães espessavam as nuvens que desabavam sobre a planície. A 2.ª Divisão do CEP ainda defendia a linha da frente, mas tinha tido finalmente ordem de retirada. No dia seguinte, após muitos e muitos meses na frente, iam ser rendidos. Sabia-se que o ataque alemão ia acontecer em breve — só não se sabia quando.

“O CEP estava cansado, a desmoralização estava a alastrar, ainda que em Março tenham combatido bem. No início de Abril houve uma série de motins que agitaram o CEP e provaram que tinha de ser retirado da frente de combate, para descansar e reorganizar e pensar o que se iria fazer com aquele exército”, conta Ribeiro de Meneses. “Havia a expectativa de irem para a retaguarda na noite de 9 para 10 de Abril. A noite de 8 para 9 é passada a preparar esse recuo da 2.ª divisão, a 1.ª já tinha sido retirada. Quando chega o ataque alemão, não é uma surpresa, mas não é o que se estava à espera.”

Os alemães cortam as linhas de comunicação dos aliados. É impossível transmitir ordens para as forças no terreno. O general Gomes da Costa não sabe o que se está a passar, não consegue impor a sua vontade no campo de batalha — o comando português fica cego. “Por isso cada posto, cada trincheira, cada metralhadora tem de funcionar por conta própria, e aí a questão do moral das tropas é essencial. Têm de resistir até ao fim sem ordens. E há muitos que não conseguem”, frisa o historiador.

“Falta a vontade de combater. Vê-se uma certa inércia, pensa-se ‘Eu não posso combater sem ordens’. Mas as ordens não chegam. Deixa-se passar a batalha”, conta.

O que os relatórios dos generais britânicos sublinham é que logo bem cedo, pelas 7h30, se viram portugueses a dirigir-se para a retaguarda. Entre as 9h e as 10h, a maioria dos portugueses da zona avançada já tinha passado pelas tropas britânicas que defendiam a três milhas [4,8 km] da frente original, escreve o brigadeiro James Edward Edmonds, citado por Ribeiro de Meneses. “Pelas 11h, praticamente toda a 2.ª Divisão, incluindo a artilharia de campo, havia desaparecido do campo de batalha.”

Apenas resistiram, aqui e ali, alguns postos. Para a historiografia britânica, Portugal combateu mal e recuou em massa. A sentença oficial é essa. A verdade é que mais de 400 portugueses morreram nesta batalha, muitos outros fugiram e cerca de sete mil renderam-se, tornando-se prisioneiros de guerra. A que se deveu tamanho descalabro? “Os alemães atacaram de uma forma completamente inesperada e contra a qual os portugueses não conseguirem sequer esboçar uma resposta”, diz o historiador.

“Ainda durante a barragem de artilharia que precedeu o ataque, e é um ataque de artilharia em que se misturaram explosivos com gases venenosos, já se começaram a infiltrar tropas especiais alemãs nas linhas portuguesas. Não só na linha da frente, como também nos flancos, no ponto em que as tropas do CEP se encontravam com divisões britânicas”, explica. “De repente, ainda antes do grande assalto que ocorre lá para as 9h, já os portugueses perceberam que têm alemães atrás deles, que estão cercados.” 

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Cemitério militar portugues de Richebourg l'Avoué ( Neuve Chapelle), na zona da batalha de La Lys Enric Vives-Rubio/PÚBLICO/Arquivo

Era uma táctica nova dos alemães. “Já tinha acontecido isso em Março, noutra frente de combate, mais a sul. E aí também tinha havido terríveis querelas sobre quem tinha sido o culpado. Era só uma nova maneira de fazer a guerra, à qual os Aliados ainda não estavam habituados. Os portugueses foram vítimas disso”, considera Ribeiro de Meneses.

Mas o que os britânicos não perdoaram, diz o historiador, foi a forma como os portugueses recuaram. “Uma das divisões à volta do CEP aguentou o embate alemão, que não foi assim tão forte. Outra, a norte, a 40.ª divisão, recua e sofre baixas tremendas, mas recua a combater, mantém alguma disciplina, hierarquia, capacidade de manobra. O CEP cedo quebrou e grande parte desfez-se e começou a fugir rumo à retaguarda. E isso reflecte-se nos 400 mortos e quase 7000 prisioneiros. Há uma desproporção grande entre esses totais e sugere que muitas unidades, vendo-se cercadas, pura e simplesmente se renderam sem combater.”

Havia, no entanto, uma cultura de procura de bodes expiatórios no exército britânico. “O comandante da força expedicionária britânica, o marechal sir Douglas Haig, funcionava muito com base em bodes expiatórios. Haig tinha conseguido minar a confiança política no primeiro comandante da força expedicionária, sir John French, tendo então assumido as rédeas do Exército britânico em França. Conseguiu sempre encontrar quem culpar pelos seus fracassos, que foram muitos”, esclarece Ribeiro de Meneses.

“Às vezes, grupos inteiros ou nacionalidades eram culpados. Podiam ser unidades irlandesas, ou escocesas, ou os australianos. A culpa tinha sempre de passar para alguém: ou um oficial, que era sacrificado, ou então grupos, sobretudo se não fossem ingleses. Haig está sempre a culpar os franceses, os franceses culpam sempre os britânicos. E a 9 de Abril os portugueses tornaram-se o bode expiatório. Mas a verdade é que o CEP quebrou. O desempenho não foi o que devia ter sido”, considera o historiador.

Durante muito tempo, Portugal não reconheceu que tinham sido feitos tantos prisioneiros de guerra. As baixas — entre as quais, Mário Ribeiro de Menezes, avô do historiador, que foi feito prisioneiro em La Couture e enviado para a Alemanha — foram contadas como se de mortos se tratassem.

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Pormenor da farda dos soldados portugueses, exibida no cemitério português de Richebourg Enric Vives-Rubio/PÚBLICO/Arquivo

“João Chagas, que já tinha deixado de ser ministro de Portugal em França por essa altura, por causa de Sidónio Pais, dizia nos diários, quando se começou a perceber os números (não o diz publicamente), ‘parece-me que há aqui uma muito grande desproporção entre prisioneiros e mortos’. Ele é o primeiro a dizer que isto é terrível, mas é melhor que tenham morrido mais pessoas para que se possa dizer que fizemos boa figura. Se foram todos feitos prisioneiros, surgem questões sobre como é que isto aconteceu, sobre a vontade de combater e a nossa dedicação aos aliados’”, relata Ribeiro de Meneses.

Toda a situação dos prisioneiros de guerra era um incómodo para o Estado português. “E não seria a única vez na história portuguesa que isso aconteceria. Como Salazar com Goa, é incómodo que haja prisioneiros.”

Se em termos internacionais a participação portuguesa na Primeira Guerra se revelou em grande parte um fiasco, deu origem, a nível nacional, a uma narrativa de sacrifício do exército na Flandres. Gomes da Costa, o único oficial português de quem os britânicos tinham boa opinião — foi o seu porta-voz. No seu relatório oficial sobre La Lys, que transformou num artigo para a revista Ilustração Portugueza de 22 e Julho de 1918, tenta ilibar-se de responsabilidades e fala do estado desfalcado da 2.ª Divisão, cujo comando herdara apenas alguns dias antes da batalha: faltavam 139 oficiais e 5792 soldados. Havia uma enorme falta de reforços, porque os ingleses recusavam transportar novas tropas portuguesas nos seus navios para França.

“A participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial teve grandes consequências para a vida nacional, ao nível do futuro da República até 1926, e depois sobre a forma como durante décadas será visto o papel de Portugal na Europa. O virar das costas à Europa, a concentração das atenções no império colonial, a atitude perante a II Guerra Mundial”, explica Ribeiro de Meneses.

A começar pelo golpe do 28 de Maio de 1926, que é liderado por militares destacados da I Guerra — desde logo, Gomes da Costa. “De certa forma, o 28 de Maio foi uma desforra do Exército. Gomes da Costa é quem lidera, ou pelo menos é a figura emblemática do 28 de Maio, o verdadeiro coordenador do golpe é Sinel de Cordes, que foi chefe de Estado-Maior enviado por Sidónio Pais”, diz o historiador.

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General Gomes da Costa DR

“O sacrifício feito pelo Exército em nome da nação é uma maneira de afirmar a superioridade moral dos militares em Portugal. Dá aos ex-combatentes o direito de intervir no Governo, para salvar a nação. Sentem um dever moral de intervir na política”, interpreta Ribeiro de Meneses. “Esta é uma ideia que tem vindo a ser desenvolvida por alguns historiadores e que tem ganho aceitação, mas muito lentamente. A ideia de uma ligação directa entre a guerra e a experiência do Exército em França e depois o golpe de Estado. Acredito nessa ligação e defendo-a há algum tempo”, afirma o historiador.

No entanto, com o nascimento do Estado Novo, após as lideranças militares que fizeram o golpe de 1926 se terem consumido rapidamente, e as elites políticas que olhavam com admiração para o fascismo de Mussolini terem encontrado o salvador das finanças e da nação que desejavam em António de Oliveira Salazar, começa a ser passada uma esponja na memória colectiva da participação portuguesa na Grande Guerra — através da qual a República tentou legitimar-se.

“O Estado Novo não gosta que se fale na República, é basicamente isso”, resume Ribeiro de Meneses. “A República serve apenas como exemplo do que não se deve fazer. Não se pode falar na República, não se pode discutir a sério, aquilo foi tudo um horror e felizmente veio depois o Estado Novo e resolveu-se a questão.” A atitude é esta.

Mas recordar o CEP e a Primeira Guerra era também uma forma de pôr em causa a ditadura. “Durante a Segunda Guerra Mundial, até com o pretexto de que as comemorações do 9 de Abril ou do 11 de Novembro [dia do Armistício da Primeira ? Guerra] podiam causar ofensa à embaixada alemã, Salazar diz mesmo: ‘Vamos acabar com isto.’ Tenta pôr cobro a estas celebrações, que davam grande visibilidade ao exército e uma ou duas vezes por ano reafirmavam a sua autoridade moral, dizendo a revolução nacional é nossa, fomos nós que a fizemos'. A resposta do Exército foi: ‘Podemos reduzir o impacto das celebrações, mas não as podemos abolir.’”

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