Como os EUA tentaram, sem sucesso, convencer os europeus e Zelensky da iminência da invasão

Merkel e Macron não queriam acreditar que Putin pudesse fazer algo tão “irracional”. Washington soube do plano ao pormenor, mas penou para persuadir os aliados da qualidade dessa informação.

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Em Outubro, Biden já conhecia o plano “de uma audácia impressionante” de Putin Reuters/MAXIM SHEMETOV

Nos meses que antecederam a invasão russa da Ucrânia, a 24 de Fevereiro, os Estados Unidos não pararam de avisar publicamente para a possibilidade de uma intervenção da Rússia em grande escala – a certa altura, o próprio Governo ucraniano pediu a Washington para não “provocar o pânico”. Segundo revela agora o jornal The Washington Post, a Casa Branca conhecia o plano da invasão meses antes da ordem de Vladimir Putin, mas não conseguiu convencer os membros da NATO da iminência do ataque.

O diário norte-americano descreve uma reunião na Sala Oval, em Outubro de 2021, entre o Presidente Joe Biden, a sua vice, Kamala Harris, e vários conselheiros militares e diplomáticos. Esta sessão foi apenas uma de várias sobre a Ucrânia no último Outono, mas destacou-se pelo detalhe na informação apresentada ao Presidente norte-americano. O responsável por organizar a sessão foi Jake Sullivan, o Conselheiro de Segurança Nacional que tinha passado de céptico para alarmado em relação às intenções russas.

Estavam presentes o secretário de Estado, Antony Blinken; da Defesa, Lloyd Austin; o chefe do Estado Maior Interarmas, general Mark A. Milley; e os directores da Agência de Segurança Nacional e da CIA. Respondendo ao pedido de Sullivan para que compusessem uma visão geral dos planos da Rússia, explicaram a Biden que “as informações dos serviços secretos sobre os planos operacionais de Vladimir Putin, em conjunto com as mobilizações em curso junto à fronteira da Ucrânia, mostravam que todas as peças se encaixavam para um assalto massivo”.

Com acesso a “múltiplos pontos da liderança política e dos aparelhos militar e de espionagem russos”, os serviços secretos dos EUA sabiam que o plano de guerra de Putin, “de uma audácia impressionante”, envolvia ocupar quase todo o país e podia “ameaçar directamente o flanco Leste da NATO ou até destruir a arquitectura de segurança do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa”.

Segundo a informação, os russos entrariam pelo Norte, de ambos os lados de Kiev, e o ataque seria lançado no Inverno: “formando uma pinça em redor da capital, as tropas russas planeavam tomar Kiev em três a quatro dias” e “as forças especiais encontrariam e removeriam o Presidente Volodymyr Zelesnky, matando-o se necessário”, para instalar um governo amistoso. Em simultâneo, entrariam pelo Leste em direcção ao rio Dnieper, enquanto as tropas na Crimeia se ocupariam da costa Sul. Depois de uma pausa para reagrupar, avançariam então para ocidente, em direcção a uma linha Norte-Sul, da Moldova à Bielorrússia – a ocidente deixariam um “estado ucraniano que, nos cálculos de Putin, era povoado por russófobos neonazis irredutíveis”.

Os detalhes obtidos incluíam posições de tropas e de armamento, estratégia operacional e o aumento de financiamento ordenado por Putin para “operações militares de contingência” e “formação de forças na reserva”, mesmo em detrimento de outras necessidades, como a resposta à pandemia. Não era um exercício. E se Biden e a sua Administração não pensavam que o mundo estivesse à beira de uma nova guerra no fim da cimeira que juntou os dois presidentes, a 16 de Junho, começaram a ficar um mês depois, quando Putin publicou o seu ensaio “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”. No fim de Agosto, como precaução, Biden autorizava o envio de 60 milhões de dólares em armas defensivas para a Ucrânia.

Depois da reunião de Outubro, o maior problema de Biden foi convencer os aliados, numa altura em que “a NATO estava longe de falar a uma voz em relação à forma de lidar com Moscovo” e “a credibilidade dos EUA estava fraca”, depois da devastadora ocupação do Iraque e do caos da retirada do Afeganistão. No final desse mês, na cimeira do G20, em Roma, Biden alertou os aliados mais próximos, França, Reino Unido e Alemanha. Semanas mais tarde, era a directora dos Serviços Secretos, Avril Haines, a insistir junto de vários membros da NATO.

De acordo com o Post, a maioria reagiu com grande cepticismo, com as excepções do Reino Unido e dos países Bálticos. Alemães e franceses temiam uma manipulação política, depois de erros anteriores dos EUA. Na prática, Angela Merkel, que estava de saída do Governo alemão, e Emmanuel Macron, em pré-campanha para as presidenciais franceses de Abril, não queriam acreditar que Putin pudesse fazer algo tão “irracional”.

Nos meses seguintes, os norte-americanos desdobraram-se em discussões e encontros para convencer os diferentes países europeus, ao mesmo tempo que fortaleciam a sua presença militar na Europa. Mas, poucos dias antes da invasão, muitos continuam sem acreditar no que aí vinha, incluindo o Presidente francês, que a 20 de Fevereiro festejou ter obtido o acordo de Putin para um encontro com Biden. Horas depois, Putin reconhecia oficialmente as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e de Lugansk, menos de quatro dias antes de invadir a Ucrânia.

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