General Kelly recorda filho morto em combate para defender Donald Trump

Chefe de gabinete da Casa Branca diz que o Presidente fez o melhor que pôde quando telefonou à mulher de um soldado morto em combate. Críticos dizem que Trump foi insensível.

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John Kelly sempre resistiu a falar em público sobre a morte do filho Yuri Gripas/Reuters

Ainda havia muito para falar sobre a guerra em que o Presidente dos Estados Unidos se meteu esta semana com a família de um militar norte-americano morto em combate no Níger, mas o respeitado general John Kelly veio em auxílio de Donald Trump para acabar de vez com o assunto. Numa declaração carregada de dor pela recordação da morte do filho no Afeganistão, e marcada por um desdém mal disfarçado por quem nunca enfrentou esse pesadelo, o actual chefe de gabinete da Casa Branca disse que ficou "chocado" com a discussão pública sobre o telefonema entre o Presidente norte-americano e a mulher do sargento LaDavid Johnson, na terça-feira.

Kelly está reformado, mas a sua experiência nos campos de batalha e a sua reputação como general que nunca teve receio de enfrentar os líderes políticos fizeram a Casa Branca crescer uns centímetros em respeitabilidade – é chefe de gabinete do Presidente Trump desde 31 de Julho, em substituição de Reince Priebus, um operacional político do Partido Republicano que não conseguiu pôr na linha a equipa da Casa Branca.

Por essa razão – e especialmente porque perdeu um filho em combate no Afeganistão, em 2010 –, John Kelly era o grande trunfo da Casa Branca para afastar as acusações de que o Presidente norte-americano foi insensível quando telefonou a Myeshia Johnson para lhe dar os sentimentos, na terça-feira. Segundo a congressista do Partido Democrata Frederica S. Wilson (uma amiga da família Johnson que estava ao lado de Myeshia durante a conversa telefónica), Donald Trump disse à mulher do sargento morto em combate no Níger que todos sabiam "no que ele se tinha metido" – mas que aquele momento, "ainda assim, devia ser muito doloroso".

A decisão do Presidente norte-americano de telefonar aos familiares mais próximos de quatro militares mortos em combate no Níger no dia 4 de Outubro foi tomada terça-feira, um dia depois de uma conferência de imprensa atribulada. Questionado sobre por que razão não tinha ainda comentado publicamente essas mortes, Trump não se limitou a responder à pergunta – disse que já tinha escrito cartas às famílias e sugeriu que é mais sensível e atencioso do que outros Presidentes, como Barack Obama, porque tem telefonado a todas as famílias de militares mortos, e dando a entender que o seu antecessor não o fazia.

Vários antigos funcionários da Administração Obama ficaram furiosos e garantiram que o antigo Presidente fez o que quase todos os outros também fizeram: umas vezes telefonou, outras vezes escreveu, outras vezes esperou num aeroporto pela chegada de caixões. Durantes os oito anos de mandato de Barack Obama morreram em combate mais de dois mil militares norte-americanos – um número que torna mais complicada a tarefa de telefonar a cada uma das famílias.

Contra "politização"

E foi isso mesmo que o general John Kelly disse ao Presidente norte-americano numa conversa na terça-feira, um dia depois daquela atribulada conferência de imprensa.

De acordo com o chefe de gabinete da Casa Branca, Donald Trump perguntou-lhe qual seria a melhor abordagem para dar os sentimentos aos familiares dos militares em causa, e Kelly disse que aconselhou o Presidente Trump a não telefonar a ninguém – porque "não é desse telefonema que os pais, os familiares estão à espera", disse o chefe de gabinete da Casa Branca na declaração feita na noite de quinta-feira.

"No meu caso, horas depois de o meu filho ter sido morto, os amigos deles ligaram-me do Afeganistão para nos dizerem que ele era uma pessoa fantástica. Esses são os únicos telefonemas que realmente importam", disse o general Kelly, emocionado – ele que resistiu até esta quinta-feira a falar abertamente sobre a morte do filho, que aconteceu há sete anos.

No fundo, John Kelly tinha uma mensagem para enviar à congressista Frederica S. Wilson e a todos os que acusaram Donald Trump de ter sido insensível: o Presidente fez o melhor que pôde numa situação muito difícil, e o país ganhava mais se não pusesse debaixo dos holofotes a família de um militar norte-americano morto em combate.

Segundo John Kelly, o Presidente Trump fez o melhor que pôde depois de ter sido aconselhado pelo general sobre o que deveria fazer. Se quisesse mesmo telefonar, então o discurso deveria ser semelhante ao que o próprio Kelly ouviu quando lhe foram comunicar a morte do filho: "Ele estava a fazer exactamente o que queria fazer quando foi morto. Sabia no que se tinha metido. Sabia quais eram as possibilidades, porque estávamos em guerra. E quando ele morreu estava rodeado pelos melhores homens desta Terra: os amigos dele."

E foi com este conselho que Donald Trump decidiu telefonar às famílias dos quatro militares mortos no Níger – uma delas, a de LaDavid Johnson, disse que se sentiu ofendida com as palavras escolhidas pelo Presidente, que Kelly disse terem sido sugeridas por ele próprio.

Crítica a Trump?

Mas a declaração do general levanta outras questões – e ainda que o tom emotivo e as lágrimas que se adivinhavam a cada frase tenham, muito possivelmente, enterrado a discussão, o que John Kelly disse pode também ser entendido como uma crítica extensível a Donald Trump.

Por um lado, foi o Presidente quem criou a polémica desta semana, ao dar a entender que tinha sido mais atencioso do que Barack Obama, quando ninguém lhe tinha perguntado nada sobre isso – o que devolve a Trump a acusação de que o caso foi politizado. Por outro lado, Trump negou de forma veemente que tenha dito aquelas palavras à mulher do sargento LaDavid Johnson, mas a declaração do general Kelly acaba por confirmar a versão da congressista Frederica S. Wilson.

Mais para o final da sua declaração, Kelly mostrou-se indignado com a congressista e magoado com a generalidade do povo americano. Indignado por Frederica S. Wilson ter "escutado aquela conversa" e magoado porque quando ele era criança "havia muitas coisas sagradas no país".

"As mulheres eram sagradas, olhadas com um grande sentido de honra. É óbvio que isso já não é assim, pelo que temos visto recentemente. A vida – a dignidade da vida – era sagrada. Já não é. E a religião também parece que já não é sagrada. Quanto às famílias de militares mortos, penso que isso deixou de ser sagrado na convenção do Verão passado. Mas eu ainda acreditava que a devoção altruísta que leva homens e mulheres a morrerem no campo de batalha era sagrada."

Não ficou claro se o general  Kelly também estava a incluir o Presidente Trump nessa sua descrição de um país a resvalar para o abismo da falta de honra e dignidade – no Verão passado, durante a convenção do Partido Democrata, o então candidato do Partido Republicano Donald Trump acusou a família Khan de estar a explorar a morte em combate do seu filho para beneficiar Hillary Clinton; durante a campanha eleitoral, foi revelada uma gravação em que Trump dizia que fazia tudo o que lhe apetecia às mulheres, incluindo "agarrá-las pela rata"; e, esta semana, foi o Presidente Trump quem decidiu sugerir que é melhor do que Barack Obama a lidar com as famílias dos militares mortos em combate.

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