May tem sete vidas. Mas o seu “Brexit” continua na incubadora

Primeira-ministra sobrevive a moção de desconfiança lançada pela ala eurocéptica do Partido Conservador e ganha imunidade durante um ano. Aprovação do acordo de saída no Parlamento mantém-se uma miragem.

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Theresa May, primeira-ministra do Reino Unido EPA/FACUNDO ARRIZABALAGA

Mais um longo dia de “Brexit”, mais uma demonstração admirável de tenacidade por parte de Theresa May. A primeira-ministra britânica conquistou esta quarta-feira um salvo-conduto de 12 meses para continuar à frente dos destinos do Partido Conservador – e consequentemente do Governo –, depois de sair vitoriosa da moção de desconfiança lançada pelos deputados do seu partido. O feito permite-lhe sacudir, por enquanto, a pressão incómoda da ala eurocéptica dos conservadores, mas dificilmente lhe garante luz verde para fazer aprovar no Parlamento o acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, alcançado com Bruxelas.

O triunfo de May na votação interna do partido não foi extraordinário, mas confirmou os sinais que foram dados ao longo do dia, com mais de 180 manifestações públicas de apoio protagonizadas por deputados tories – até o ex-primeiro-ministro e organizador do referendo do “Brexit”, David Cameron, recorreu ao Twitter para pedir apoio para a sua sucessora. 

Segundo os regulamentos do Partido Conservador, a primeira-ministra precisava de pelo menos 159 votos (metade mais um dos 317 deputados conservadores) para evitar uma disputa pela liderança. Conseguiu 200 (63%) – contra 117 – e, com eles, o enésimo balão de oxigénio desde chegou a Downing Street, para enfrentar a montanha de obstáculos que ainda tem pela frente.

Ao início do dia eram apenas necessários 158 votos, mas durante a tarde Charlie Elphicke e Andrew Griffiths – que se encontravam suspensos devido por alegadas ofensas de cariz sexual – foram autorizados a participar na votação, aumentando o número de deputados conservadores de 315 para 317.

“Depois desta votação devemos prosseguir com o nosso trabalho para ofereceremos o ‘Brexit’ aos britânicos e construirmos um futuro melhor para este país”, afirmou May, numa curta declaração aos jornalistas, pouco depois de conhecidos os resultados, na qual assumiu estar consciente da oposição “considerável” dentro do partido.

No sprint final antes da votação ao final da tarde, May acenou aos deputados com a promessa de que não concorrerá às próximas eleições, agendadas para 2022. Um gesto que pretende ser apaziguador e que foi recebido com satisfação pelos parlamentares conservadores. Talvez até tenha sido decisivo para o resultado da votação, juntamente com a ameaça de se ter de estender a aplicação do artigo 50.º do Tratado da UE e adiar a data de saída (29 de Março de 2019).

Rebelião fracassada

Avançada há várias semanas pelos media britânicos como um cenário potencial, a votação de desconfiança em May só foi possível devido à campanha montada pela facção “hard-brexiteer” do Partido Conservador, que inclui nomes como o de Boris Johnson (ex-ministro dos Negócios Estrangeiros), David Davis (ex-ministro do “Brexit”) ou Ian Duncan Smith (ex-líder do partido). 

Foi, aliás, Jacob Rees-Mogg, líder do European Research Group (ERG) – que junta os tories eurocépticos –, que incitou os deputados a enviarem as 48 cartas necessárias (15% dos deputados) para o líder do grupo parlamentar Graham Brady, na sequência do anúncio do acordo alcançado com a União Europeia sobre o divórcio, no final de Novembro, que aqueles conservadores entendem como uma “capitulação” a Bruxelas.

O movimento contestatário tornou a vida de May insuportável em Westminster, já que juntou uma fatia considerável de deputados do seu próprio partido à extensa lista de opositores ao ‘seu’ “Brexit”, que já incluía trabalhistas, liberais-democratas, nacionalistas-escoceses, verdes e unionistas norte-irlandeses. E pior do que a oposição incómoda dos eurocépticos, foi a incapacidade de May em fazer-lhes frente na Câmara dos Comuns.

Esta votação – e o seu desfecho – funcionam, por isso, como uma demonstração de força de May e do partido sobre a ala brexiteer, que muitos conservadores acusam de querer levar o país para um cenário de saída sem acordo. Mesmo que um considerável número de 117 deputados tenha assumido querer vê-la pelas costas. Porque quando o objectivo é sobreviver, como May tem vindo a fazer, repetidamente, desde 2016, um ou 117 votos têm o mesmo efeito.

“Acredito que este voto vai dispersar os extremistas que estão a tentar avançar com uma agenda que não é do interesse da população e da economia britânica. Sair da UE sem acordo seria mau para o Reino Unido”, acusava, ainda antes da votação, o ministro das Finanças, Philip Hammond.

Rees-Mogg, no entanto, não tem a mesma opinião. “Aceito o resultado mas Theresa May ainda deveria ir ter com a rainha e demitir-se”, defendeu, depois de conhecer o resultado da votação.

Hostilidade em Westminster

Ultrapassada a moção, May pode voltar a focar-se no processo de venda do tratado jurídico do “Brexit” aos deputados. Mas o desafio continua a ser enorme. A primeira-ministra até pode ganhar alguns apoios de conservadores para o acordo do “Brexit”, mas continua a contar com a oposição de representantes de todos os partidos com assento na Câmara dos Comuns, incluindo o núcleo duro do tories eurocépticos e o Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte, de cujos dez deputados depende a sobrevivência do Governo no Parlamento.

O adiamento da votação do tratado jurídico do divórcio – inicialmente marcado para terça-feira e que May quer realizar até 21 de Janeiro –, deixou a oposição furiosa e levou os Liberais Democratas, o Partido Nacional Escocês, o Partido Verde e o Plaid Cymru a suplicarem ao líder do Partido Trabalhista que apresente uma moção de censura ao Governo.

Jeremy Corbyn quer eleições, é certo, mas prefere lá chegar só depois de assistir ao chumbo do acordo do Governo na Câmara dos Comuns.

“A fase da hesitação e da demora já acabou. A primeira-ministra negociou o seu acordo e disse-nos que é o melhor e o único acordo disponível. Por isso chega de desculpas e de fugas. Apresente-o ao Parlamento e vamos votá-lo”, exigiu esta quarta-feira na sessão de perguntas à primeira-ministra, mais irritado do que o habitual. 

Para evitar uma derrota humilhante em Westminster, May partiu na terça-feira para um périplo por Haia (Holanda), Berlim (Alemanha) e Bruxelas (Bélgica) – tinha previsto ir também a Dublin (República da Irlanda), mas a moção obriga-a a alterar os planos – para procurar, junto dos líderes europeus, garantias “legais e políticas” sobre a controversa solução para evitar uma fronteira física na ilha irlandesa (o backstop).

E, ao mesmo tempo, encontrar uma forma de capacitar a Câmara dos Comuns para, quando for altura de se decidir sobre a eventual entrada em vigor do backstop, em 2020, ter uma palavra a dizer.

Entre os 27, que se reúnem em Conselho Europeu na quinta e sexta-feira, impera a indisponibilidade para renegociar a cláusula da garantia irlandesa, apesar de haver alguma abertura para ajudar Theresa May, que estará em Bruxelas, a conseguir aprovar o acordo.

Certo é que o respaldo tory à sua líder continua a ser insuficiente para conseguir convencer amigos e inimigos do Parlamento de que o seu acordo do “Brexit” é único disponível. “O problema não é May, é o ‘Brexit’”, resume o colunista do Guardian Jonathan Freedland.

Entre um no-deal, novas eleições, extensão do artigo 50.º ou convocação de um segundo referendo, não faltam aos deputados cenários mais apetecíveis do que aquele que May propõe com o seu acordo. O relógio é que não pára e com a data de saída a aproximar-se a passos largos, quem sabe se esta moção não será avaliada pela História como uma enorme perda de tempo na caminhada para um “Brexit” desgovernado. Mesmo que ainda não tenha sequer saído da incubadora.

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