Não acabou/ tem de acabar/ eu quero o fim/ da Polícia Militar

1. Quando fui dormir contavam-se mais de cem feridos. Esta manhã passavam de duzentos, em maioria professores no activo, mas também reformados, crianças, gente em cadeira de rodas, jornalistas que cobriam o acontecimento: uns atingidos por balas de borracha, outros por bastões, pontapés, bombas de gás lacrimogéneo, spray de pimenta, jactos de água ou pitbulls. Aconteceu quarta-feira, no centro de Curitiba, por ordem do governador do Paraná, e foi uma das mais violentas cargas da Polícia Militar contra manifestantes desarmados de que haverá registo na democracia brasileira.

2. “Praça de guerra”, resumiu o prefeito da cidade, enquanto o edifício da prefeitura era transformado em refúgio e enfermaria de emergência. Desde sábado que a praça frente à Assembleia Legislativa do Paraná estava cercada pela Polícia Militar, obedecendo às ordens do governador Beto Richa (PSDB). Uns bons passos à esquerda, o prefeito Gustavo Fruet (PDT) denunciara o cerco como “um abuso” mas o contingente militar só se reforçou no dia da manifestação, com atiradores no cimo de prédios e helicópteros. A insatisfação dos professores vinha de trás, passara por uma greve entre Fevereiro e Março, e nessa quarta-feira os deputados do Paraná iam votar um projecto que cobriria buracos nas contas governamentais à custa de mexidas na reforma dos funcionários públicos. Os professores eram um dos grupos atingidos pela alteração. O protesto juntou milhares, 20 mil segundo a organização, em frente à Assembleia, cujo acesso estava bloqueado pela polícia. Segundo vários relatos na imprensa, quando os primeiros manifestantes tentaram furar o cerco para entrar na sessão, derrubando grades, a polícia respondeu com tiros de borracha, jactos de água e bombas de gás lançadas de helicópteros. Há fotografias de manifestantes com buracos de balas de borracha na cabeça e no tronco. Testemunhas contam que professores foram chutados e espancados quando já estavam no chão, feridos. Um jornalista foi levado em estado grave para o hospital depois de ser atacado por um pitbull da Polícia Militar. Os gases alcançaram uma creche vizinha, que convocou os pais de urgência a retirarem os filhos.

3. Com tudo isto a acontecer lá fora, e sem presença popular na votação, os deputados aprovaram o projecto, que agora segue para confirmação do governador Beto Richa. O nome parece uma caricatura, à altura de bandido-chefe, e ele não desarmou. No auge da pancadaria, apareceu a dizer que os manifestantes eram “black blocs”, justificando assim a truculência policial. Mais tarde declarou que a polícia — armada e equipada com capacetes, coletes e escudos perante manifestantes sem armas e sem protecção — agiu para proteger a própria vida. O sindicato dos professores anunciou que o vai processar. Uma greve geral de professores estava marcada para esta quinta-feira em que escrevo.

4. Estive em Curitiba apenas uma vez, atrás da sombra de Dalton Trevisan, esse enigma vivo da literatura brasileira. Mas, à distância, mantenho contacto regular com um curitibano da gema, por acaso professor (da Universidade do Paraná), Caetano Galindo, tradutor da mais recente edição brasileira de Ulisses, de James Joyce. Onde andaria ele, pensei, ao ver aquela sucessão de professores ensaguentados. Mandei-lhe uma mensagem já de madrugada, perguntando se gostaria de dizer algo sobre o sucedido, e esta manhã ele respondeu: “A incompetência do governo atual [do Paraná], financeira, política, retórica, não deixa de surpreender. A estupidez do comando da situação, além de total falta de respeito, demonstra uma falta de mero bom-senso que chega a espantar. Não me lembro de ter visto alguém tão nitidamente incompetente no cenário político.”

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Reuters

5. Caetano não estivera na praça mas o seu irmão, jornalista, sim, caso eu quisesse falar com ele. Escrevi então a Rogério Galindo, que em menos de uma hora respondeu: “Em 15 anos de jornalismo, nunca tinha sentido o gás lacrimogêneo se espalhar à minha volta. O gás arde nos olhos, queima a garganta e o nariz, faz chorar. Mas eu e muitas pessoas que estavam ali chorávamos por outras razões, na verdade: por vermos feridos, por vermos gente sendo carregada, sangrando, por vermos a aflição dos que corriam para escapar às bombas e aos policiais. Chorávamos pelo absurdo que se praticava contra nossa democracia.”

6. Entretanto, alguém recuperava online uma entrevista que Beto Richa dera há tempos à rádio brasileira de notícias, em que se declarava contra a formação superior de polícias, para evitar desobediências. Argumentava ele: “Outra questão é de insubordinação também, uma pessoa com curso superior muitas vezes não aceita cumprir ordens de um oficial ou um superior, uma patente maior.” A partilha desta entrevista coincidiu com a notícia de que 17 polícias se tinham recusado a participar no cerco aos manifestantes e teriam sido detidos por desobediência.

7. Um polícia trabalha para o Estado, como um professor do ensino público trabalha para o Estado. O que aconteceu em Curitiba, assinalaram várias testemunhas, foi o Estado contra o Estado. Mais precisamente: um líder, eleito, lançando pesadamente uma parte do Estado, armada, contra outra parte do Estado, desarmada. Distorção extrema da democracia, ao ponto de começar a repetir-se insistentemente nas redes sociais a palavra “fascismo”.

8. Muitos destes polícias também nasceram negros ou pobres, como os negros ou pobres que mais morrem no Brasil, empurrados para o que sobra, carne para canhão, numa cultura que há séculos favorece obediência, falta de autonomia e repressão, assim perpetuando a violência. Em Agosto de 2013, na sequência das manifestações que tinham sacudido o Brasil em Junho, muitas vezes violentamente reprimidas, entrevistei o coronel Ibis Silva Pereira, que então dirigia o novo programa de formação da Polícia Militar. O coronel Ibis queria acabar com a “lógica do inimigo”, intrínseca à própria noção de Polícia Militar, e para isso, sim, ele defendia o fim da Polícia Militar, ou seja a desmilitarização da polícia. Dias depois dessa entrevista, o coronel Ibis foi deslocado de funções. Vendo a polícia agir agora em Curitiba também pensei nele.

9. “A Polícia Militar é mais do que uma herança da ditadura, é a pata da ditadura plantada com suas garras no coração da democracia”, disse numa entrevista o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos maiores especialistas brasileiros em segurança pública. Luiz Eduardo era um admirador do coronel Ibis, e nesses dias de Agosto de 2013 acreditava que a conjuntura brasileira ia apontar para uma desmilitarização, essencial à democracia: “A cultura militar é muito problemática para a democracia porque ela traz consigo a ideia da guerra e do inimigo. A polícia, por definição, não faz a guerra e não defende a soberania nacional. O novo modelo de polícia tem de defender a cidadania e garantir direitos, impedindo que haja violações às leis. Ao atender à cidadania, a polícia se torna democrática.” Nessa entrevista, Luiz Eduardo dizia que “70% dos soldados, cabos, sargentos e subtenentes querem a desmilitarização e a mudança de modelo”, enquanto a percentagem entre os oficiais desce para 54%. Ainda assim, uma maioria absoluta a favor da desmilitarização. Mas quase dois anos depois das manifestações que tomaram o Brasil — e em que tantas vezes ouvi o lema “Não acabou / tem de acabar / eu quero o fim / da Polícia Militar!” —, Curitiba não aponta nessa direcção.

10. Um pouco mais a sul da capital paranaense, em Pelotas, interior do Rio Grande do Sul, o sempre grande Odyr Berrnardi desenhou dois PM (polícias militares), escudados até aos dentes, um dizendo para o outro, lá no combate de Curitiba: “Minha professora disse que estou irreconhecível nesse uniforme.”

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