Naomi Klein: “As nossas decisões individuais não têm qualquer efeito face à mudança de que precisamos”

“Temos todas as hipóteses de falharmos o alvo, mas cada fracção de grau de aquecimento global que sejamos capazes de adiar é uma vitória”, afirma Naomi Klein.

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Naomi Klein REUTERS/Toby Melville

Naomi Klein, a conhecida autora de No Logo [No Logo – O Poder das Marcas, edição portuguesa da Relógio d’Água], jornalista, activista social, na área do ambiente e não só, acaba de lançar On Fire: The Burning Case for a Green New Deal. Nesta entrevista ao The Guardian, a canadiana, várias vezes distinguida por artigos publicados em jornais de diferentes partes do mundo, fala sobre soluções para a crise climática, sobre Greta Thunberg, sobre as “greves de natalidade”. E confessa: “Não passa um dia em que eu não tenha um momento de pânico puro, terror cru, completa convicção de que estamos condenados.” Mas a nova geração, “tão determinada”, dá-lhe esperança.

Porque decidiu publicar este livro agora?
Ainda sinto que a maneira como falamos sobre as alterações climáticas é muito compartimentada, muito isolada das outras crises que enfrentamos. Uma ideia muito vincada e que atravessa todo o livro é que há elos de ligação entre a crise climática e as crises da crescente supremacia branca, das várias formas de nacionalismo e do número tão grande de pessoas que são expulsas das suas pátrias. Estas crises cruzam-se e estão interligadas, pelo que as soluções para elas também têm de estar.

O livro reúne ensaios escritos durante a última década. Mudou de opinião sobre alguma coisa?
Quando olho para trás, acho que não coloquei ênfase suficiente no desafio que as alterações climáticas colocam à esquerda. É mais óbvia a forma como a crise climática desafia uma visão do mundo predominantemente de direita e o culto de um centrismo sisudo que nunca quer grandes alterações e que procura sempre compromissos. Mas este é também um desafio para as visões de esquerda, interessadas essencialmente na redistribuição do espólio do extractivismo [o processo de extracção dos recursos naturais da Terra] sem considerar os limites do consumo infinito.

O que impede a esquerda de dar esse passo?
No contexto norte-americano, o maior tabu de todos é sequer admitir que vai haver limites. Vemos isso na forma como o Green New Deal [série de propostas económicas para ajudar a combater as alterações climáticas] é atacado na Fox News – “eles querem proibir-nos de comer hambúrgueres!” Isso é um soco no estômago do sonho americano – cada geração tem mais do que a anterior, há sempre novas fronteiras a explorar, toda aquela ideia da colonização de povoamento das nações como a nossa. Quando aparece alguém a dizer que, na verdade, existe um limite, que temos de tomar decisões difíceis, que temos de perceber como gerir o que resta, que temos de partilhar de forma equitativa – isso é um ataque à psique colectiva.

E portanto a resposta [da esquerda] tem sido evasiva, dizendo apenas que não, não queremos tirar-vos as vossas coisas, que vai haver todo o tipo de benefícios. E haverá benefícios: teremos cidades mais habitáveis, o ar menos poluído, passaremos menos tempo presos no trânsito, poderemos planear vidas mais felizes e mais ricas de imensas formas diferentes. Mas teremos de reduzir o consumo infinito e descartável.

Sente-se encorajada pelo debate em torno do Green New Deal?
Sinto um tremendo entusiasmo e uma sensação de alívio por estarmos finalmente a falar de soluções à escala da crise que enfrentamos. Já não estamos simplesmente a falar de uma pequena taxa sobre o carbono ou de um sistema de limitação e transacção de emissões como soluções mágicas, estamos a falar de transformar a nossa economia. De qualquer forma, o sistema está a falhar para a maioria das pessoas, e é por isso que estamos a passar por este período de profunda desestabilização política – que está a fazer aparecer os Trumps e os “Brexits” e todos esses líderes autoritários. Então porque não tentamos descobrir como mudar tudo desde a base até ao topo, e como o fazer lidando com todas essas crises ao mesmo tempo?

Temos todas as hipóteses de falharmos o alvo, mas cada fracção de grau de aquecimento global que sejamos capazes de adiar é uma vitória, e cada política que consigamos implementar para tornarmos as nossas sociedades mais humanas é um passo para resistirmos aos inevitáveis choques e tempestades que virão sem cairmos na barbárie. Porque o que realmente me aterroriza é aquilo que vemos nas nossas fronteiras na Europa, na América do Norte e na Austrália – não acho que seja uma coincidência que os estados que defendem a colonização de povoamento e os países que são o motor desse colonialismo estejam na linha da frente dessas situações. Estamos a assistir ao início de uma era de barbárie climática. Vimo-lo em Christchurch, vimo-lo em El Paso, o casamento entre a violência da supremacia branca com o cruel racismo anti-imigração.

Essa é uma das partes mais assustadoras do seu livro – e parece-me que é uma ligação que poucas pessoas têm feito.
É um padrão que já é claro há algum tempo. A supremacia branca emergiu não apenas porque algumas pessoas tiveram vontade de pensar em ideias que matassem muita gente, mas também porque era útil para proteger acções bárbaras, mas altamente lucrativas. A era do racismo científico começou com o comércio transatlântico de escravos, era a lógica que justificava aquela brutalidade. Se a nossa resposta às alterações climáticas é o reforço das nossas fronteiras, é claro que as teorias que o justificam, e que criam essas hierarquias dentro da humanidade, voltam em força. Há anos que há sinais disso, mas agora está a ficar mais difícil negá-lo porque temos assassinos a gritá-lo em cima de telhados.

Uma das críticas que se vê ao movimento ambientalista é que é dominado por brancos. Como vê essa questão?
Quando temos um movimento que é esmagadoramente representativo do sector mais privilegiado da sociedade, a sua abordagem será muito mais avessa a mudanças, porque as pessoas que têm muito a perder tendem a ter mais medo de mudanças, enquanto as pessoas que têm muito a ganhar tendem a lutar mais por elas. Esse é o grande benefício de ter uma abordagem à crise do clima que a ligue às questões mais vitais para as pessoas: como é que vamos conseguir empregos mais bem remunerados, habitação a preços acessíveis, condições para as pessoas cuidarem das suas famílias?

Ao longo dos anos fui tendo muitas conversas com ambientalistas, e percebi que eles parecem realmente acreditar que ligar o combate às alterações climáticas ao combate à pobreza ou à luta pela justiça racial faz com que seja mais difícil ter sucesso. Temos de largar a ideia de que “a minha crise é maior do que a tua: primeiro salvamos o planeta e depois combatemos a pobreza, o racismo e a violência contra as mulheres”. Não funciona assim. E afasta as pessoas que estariam mais dispostas a lutar por mudanças.

Este debate mudou imenso nos EUA por causa da liderança do movimento pela justiça climática e porque são mulheres congressistas de cor quem está a defender o Green New Deal. Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib vêm de comunidades que foram tratadas de forma tão injusta durante os anos do neoliberalismo, e mais para trás também, que estão determinadas a representar, mas representar verdadeiramente, os interesses dessas comunidades. Não têm medo de mudanças profundas porque as suas comunidades precisam desesperadamente delas.

No livro, escreve que “a dura verdade é que a resposta à pergunta ‘O que posso fazer individualmente para impedir as alterações climáticas?’ é: Nada”. Ainda acredita nisso?
Em termos do carbono, as decisões individuais que tomamos não têm qualquer efeito face à escala da mudança de que precisamos. E acredito mesmo que o facto de para tantas pessoas ser muito mais confortável falar sobre os nossos consumos pessoais do que sobre mudanças sistémicas é um produto do neoliberalismo, que nos treinou para olharmos para nós próprios como consumidores acima de tudo. Para mim, essa é a vantagem de recuperarmos essas analogias históricas, como o New Deal ou o Plano Marshall – lembram-nos de épocas em que éramos capazes de pensar em mudanças nessa escala. Porque a verdade é que temos sido treinados para pensar em pequena escala. É incrivelmente significativo que Greta Thunberg tenha transformado a sua vida num grito pela emergência.

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Greta Thunberg REUTERS/Wolfgang Rattay

Sim, ela viajou para a cimeira do clima da ONU em Nova Iorque num iate “carbono zero”...
Exactamente. Mas a questão não é o que Greta faz individualmente. É sobre o que ela transmite nas escolhas que faz como activista, e eu respeito muito isso. Acho que é maravilhoso. Ela está a usar o poder que tem para alertar que isto é uma emergência, e a tentar inspirar os políticos a verem o assunto da mesma maneira.

Não acho que ninguém esteja isento de examinar as suas próprias decisões e comportamentos, mas creio que é possível atribuir demasiada importância às escolhas individuais. Eu fiz uma escolha – e isto acontece desde que escrevi o No Logo – e comecei a receber as perguntas da praxe: “O que devo comprar? Onde devo comprar? Quais são as roupas éticas e sustentáveis?” A minha resposta continua a ser que não sou uma lifestyle adviser nem uma guru da moda, e que tomo as minhas decisões pessoais sem nunca cair na ilusão de que essas decisões vão fazer a diferença.

Algumas pessoas estão a decidir fazer “greves de natalidade”. O que pensa sobre isso?
Fico feliz por essas discussões estarem a entrar no domínio público, em vez de serem questões furtivas sobre as quais temos medo de falar. Tem sido algo que isola muito as pessoas, e foi também o que aconteceu comigo. Esperei muito tempo para tentar engravidar e estava sempre a dizer isso ao meu companheiro: “O quê, queres criar um guerreiro aquático ao estilo Mad Max que tenha de lutar contra os seus amigos por comida e água?”

Foi só quando me juntei ao movimento pela justiça climática que consegui ver um caminho à minha frente que me permitisse sequer pensar em ter um filho. Mas nunca diria a ninguém como responder a essa pergunta, a mais íntima de todas. Como feminista que conhece a história brutal da esterilização forçada e as formas como os corpos das mulheres se convertem em campos de batalha quando os políticos decidem que vão tentar controlar a população, acredito que a ideia de que existem soluções regulatórias para se devemos ou não ter filhos é catastroficamente a-histórica. Precisamos de sofrer juntos com a nossa tristeza e os nossos medos relativos ao clima, mas a discussão que é preciso ter é como construir um mundo em que as crianças tenham uma vida próspera e livre de carbono?

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EPA/PHILIPP GUELLAND

Durante o Verão, incentivou as pessoas a lerem o romance de Richard Powers, The Overstory [vencedor do Pulitzer de Ficção em 2019, sem edição portuguesa]. Porquê?
Foi um livro incrivelmente importante para mim, e estou feliz por tantas me terem escrito desde então. O que Powers escreve sobre as árvores, que vivem em comunidade e comunicam entre si, que fazem planos e reagem em conjunto e que temos estado completamente errados na forma como as conceptualizamos, é a mesma conversa que estávamos a ter sobre se vamos conseguir resolver isto individualmente ou conseguir salvar o organismo colectivo. É também raro vermos, em ficção de qualidade, uma valorização e um verdadeiro respeito pelo activismo, incluindo os seus fracassos, e um reconhecimento do heroísmo das pessoas que colocam as suas vidas em risco. Acho que Powers fez isso de uma forma realmente extraordinária.

Qual a sua opinião sobre o que a Extinction Rebellion [“Rebelião da Extinção”, movimento sociopolítico global que defende a resistência não-violenta e a desobediência civil para evitar o colapso do clima] conseguiu atingir até agora?
Uma coisa que eles fizeram muito bem foi libertar-nos desse modelo clássico de campanha que temos há tanto tempo, em que dizemos a alguém algo assustador e pedimos-lhe que cliquem em algo ou que façam alguma coisa acerca disso, e saltamos completamente a parte em que precisamos de lamentarmos e sentirmos juntos, e processarmos aquilo que acabamos de ver. Porque o que eu ouço muitas vezes é que “ok, se calhar nos anos 30 e 40 as pessoas conseguiam organizar-se bairro a bairro ou local de trabalho a local de trabalho, mas nós não conseguimos.” Acreditamos que estamos tão diminuídos enquanto espécie que somos incapazes disso. E a única coisa que pode mudar essa crença é encontrarmo-nos cara a cara em comunidade, partilhando experiências, longe dos écrans e juntos nas ruas e na natureza, e irmos conseguindo algumas vitórias e sentirmos esse poder.

No livro fala sobre energia. Como consegue seguir em frente? Sente-se com esperança?
Tenho sentimentos complicados sobre a questão da esperança. Não passa um dia em que eu não tenha um momento de pânico puro, terror cru, completa convicção de que estamos condenados, e depois faço por afastar esses pensamentos. Sinto-me renovada por esta nova geração tão determinada e tão forte. Inspira-me a vontade de participar nas políticas eleitorais, porque a minha geração, nos nossos vintes e trintas, tinha tanto receio de sujar as mãos na política que perdemos muitas oportunidades. Actualmente, o que me dá mais esperança é que finalmente temos uma visão daquilo que queremos, ou pelo menos um primeiro rascunho disso. E é a primeira vez que isso acontece na minha vida. E também o facto de ter decidido ter filhos.

Tenho um rapaz de sete anos que é completamente obcecado e apaixonado pelo mundo da natureza. Quando penso nele, depois de temos passado o Verão inteiro a conversar sobre o papel do salmão na alimentação das florestas onde ele nasceu, na British Columbia, e como isso está ligado à saúde das árvores e do solo e dos ursos e das orcas e deste inteiro e magnífico ecossistema, e penso em como seria ter de lhe dizer que o salmão já não existe, isso mata-me por dentro. Portanto, isso motiva-me. E ao mesmo tempo mata-me.

Esta entrevista foi originalmente publicada no The Guardian e integra o projecto Covering Climate Now, uma colaboração global de mais de 250 organizações de media para fortalecer e dar profundidade à cobertura da crise climática.

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