Açambarcamento de bens públicos

No caso do Remdesivir, nem a declaração de ‘bem público’ pelos Estados funcionou, nem se verificou a responsabilidade social da empresa. Aconteceu apenas o mais indigno dos açambarcamentos.

Uma das primeiras poucas certezas que se adquiriu em relação ao novo coronavírus foi a de, no seu elevado nível contagioso, poder infectar todas as pessoas, tanto príncipes como sem-abrigo, presidentes de governo ou desempregados. Disse-se então ser um vírus democrático. Depois, foi-se adquirindo uma segunda certeza ainda mais pertinente: a de que agravava as desigualdades sociais. Se todos são susceptíveis de contágio, nem todos estão igualmente expostos ou têm as mesmas condições para se protegerem. Neste sentido, o vírus espelha a nossa sociedade e devolve-nos um reflexo de contornos bem vincados, que se aprofundam. Entretanto, confirma-se agora uma terceira certeza: a de que o tratamento possível e a cura desejada poderão não ser para todos, mas apenas para quem tiver mais influência e puder pagar mais. Esta é uma conclusão possível depois de os Estados Unidos terem açambarcado o stock disponível dos próximos três meses de Remdesivir, o primeiro medicamento autorizado para o tratamento de doentes graves com covid-19.

A disputa feroz entre Estados por recursos de combate à covid-19 tem sido uma constante ao longo desta pandemia. Recordemos a competição sem escrúpulos entre muitos para a aquisição sobretudo de ventiladores, mas também de máscaras e até de desinfectantes. Assistiu-se a episódios de pirataria entre países oficialmente democráticos, com aviões carregados de material médico a serem bloqueados ou mesmo desviados em escalas técnicas para apropriação da carga, como se verificou com a retenção de um avião espanhol pela Turquia. A atitude açambarcadora dos Estados Unidos manifestou-se desde o início, com o desvio de máscaras destinadas à França e depois à Alemanha, bloqueando a sua aquisição pelo Canadá, comprando posições prioritárias na Rússia. Ainda em Março, o Presidente Trump tentou também ganhar o exclusivo de uma potencial vacina a uma empresa alemã. Não se tratava então apenas de comprar uma posição privilegiada no acesso à vacina, mas de obter o exclusivo sobre este bem necessário e urgente em todo o mundo, para toda a humanidade. A resposta europeia foi vigorosa e teve o mérito de reclamar o estatuto de ‘bem público’ para uma futura vacina, o que impede a sua apropriação por quem quer que seja e exige a sua igual disponibilização a todas as pessoas.

O Remdisivir, um antiviral já conhecido e utilizado para combater o ébola, produzido por uma empresa privada, a Gilead Sciences, não se adequa aos requisitos de um ‘bem público’. A corrida à produção de uma vacina é diferente, mas talvez nos possa mostrar caminhos eticamente aceitáveis ao mesmo tempo que economicamente sustentáveis.

Na senda da vacina têm-se desenvolvido duas formas de actuação complementares. Uma, de angariação internacional de fundos para reforço do financiamento disponível, potencializando a sua criação e reduzindo o tempo médio para tal. Esta iniciativa europeia, a que se têm juntado muitos países em todo o mundo, sobressaindo a ausência dos Estados Unidos, assegura o igual acesso de todos a uma futura vacina, não só dos participantes nesta aliança internacional, mas também dos países pobres, especialmente em África. A doação internacional aposta na distribuição mundial da vacina como um bem público.

Outra forma de acção tem sido a de financiar directamente os projectos de criação de vacinas de algumas biofarmacêuticas. Por exemplo, Alemanha, França, Itália e Holanda acordaram com a AstraZeneca o acesso, até ao fim do ano, a cerca de 300 a 400 milhões de doses da vacina que esta biofarmacêutica britânica está a testar com a Universidade de Oxford. A empresa privada não terá qualquer lucro com o negócio durante a pandemia, sendo os custos de produção garantidos pelos países. O financiamento directo de biofarmacêuticas articula-se com a responsabilidade social destas empresas para aumentar a produção e o acesso. Este modelo de intervenção tanto se pode aplicar à produção de vacinas como de medicamentos.

No caso do Remdesivir, porém, nem a declaração de ‘bem público’ pelos Estados funcionou, nem se verificou a responsabilidade social da empresa. Aconteceu apenas o mais indigno dos açambarcamentos.

A verdadeira questão que se nos coloca não passa por saber se as negociações apressadas da União Europeia com a Gilead Sciences para obter algum stock de Remdesivir vão ter sucesso ou se Portugal até pode sair beneficiado porque também produz este medicamento. O que prevalece de relevante para hoje, como para tantas outras situações futuras, é o confronto entre duas estratégias de actuação: a da competição, sem olhar a meios, pela posse particular de um bem vital para muitos, ou a da colaboração, transparente, assegurando a partilha por todos os necessitados; a do açambarcamento ou a da distribuição. Nunca vale tudo e numa pandemia só vale o que pode ser de todos.

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