O desastre anunciado

Isto não é um modelo de País. Isto é um desastre anunciado. Um país sem coesão territorial é um País sem nexo e sem futuro. Não haverá por aí políticos que oiçam o menino dizer que o Rei vai nu?

O tema da venda das barragens da EDP à Engie, que tem estado em debate nacional nos últimos meses pelas piores razões, permitiu até à data evidenciar sem margem para qualquer dúvida que:

  • a EDP utilizou um planeamento fiscal abusivo com a única intenção de não pagar os impostos que devia nesta transacção;
  • o senhor ministro do Ambiente mostrou não ter a competência e, sobretudo, a responsabilidade que se exige a um ministro da República na defesa do interesse público;
  • tanto o senhor ministro como a EDP e a Engie ignoraram que há enormes impactos ambientais por resolver há décadas, provocados pela construção e ampliação das barragens e pela incúria da EDP na preservação de um património arquitectónico modernista de reconhecido valor.

Como disse o senhor primeiro-ministro, todo este “bruá” poderia e deveria ter sido evitado, sobretudo numa época em que o País se devia dedicar com todas as suas forças a resolver as crises pandémica e económica que nos estão a abalar. Bastaria para tal que o senhor ministro do Ambiente, alertado por escrito pelo movimento cívico da Terra de Miranda para o “esquema que estava desenhado”, tivesse chamado a EDP e, no uso das suas competências como representante do Estado, lhe tivesse dito que o negócio só se realizaria se, para além das demais imposições de carácter técnico e ambiental que exigiu, tivesse dito também que, sem o pagamento dos impostos devidos e sem “esquemas”, bem como sem a resolução dos graves impactes ambientais que subsistem, a transacção não se faria. A EDP poderia nesse caso responder que assim não faria a venda e... continuaria como a concessionária. Tão simples quanto isto.

Infelizmente, já todos percebemos que o grosso das receitas dos impostos agora exigidos irão arrastar-se em infindáveis processos judiciais e dificilmente chegarão à Terra de Miranda.

E é precisamente por esta razão que nos devemos inquietar: esta teria sido uma ocasião de ouro para, sem recurso ao dinheiro dos contribuintes, ter aproveitado a transacção de uma riqueza gerada em determinada região para atenuar as assimetrias e promover a coesão territorial.

Durante toda a caminhada democrática muito se tem feito para que o País evolua e a sua gente usufrua de melhores condições de vida. Contudo, temos vindo a assistir, quase indiferentes, a este desastre da desertificação de vastas áreas do interior com consequente avalanche populacional nos centros urbanos do litoral. Tendência essa duplamente negativa: nas regiões desertificadas, as casas entram em ruínas, encerram-se as intra-estruturas como tribunais, escolas, correios, comboios, hospitais, com o argumento de que não há utentes. E nos grandes aglomerados populacionais, o aumento exponencial obriga a que grande número de pessoas vivam em condições indignas e as infra-estruturas nunca sejam suficientes para satisfazer a elevadíssima procura.

Isto não é um modelo de País. Isto é um desastre anunciado. Um país sem coesão territorial é um País sem nexo e sem futuro. Mas, se repararmos bem, não há político que se preze que não tenha a boca cheia destes chavões de “combate à desertificação demográfica”, “promoção da coesão territorial”, etc. Usam estes “sound-bites” como um mantra para serenarem as suas agitadas consciências. Mas, na realidade, não fazem nada.

Tomemos o exemplo da Terra de Miranda: esta região engloba três concelhos (Mogadouro, Miranda do Douro e Vimioso) numa área de cerca de 1.600 km2. Tem afinidades morfológicas, culturais, sociais e económicas. Nos últimos 60 anos, enquanto o País aumentava a sua população em 30%, esta região perdeu 65%. Perdeu o hospital, perdeu o comboio, perdeu o tribunal, a internet é uma fantasia. Em 1960 havia na cidade de Miranda do Douro oito escolas primárias e todas as aldeias tinham no mínimo uma professora. Hoje há duas escolas primárias em todo o concelho. Em Vimioso, já há uma aldeia fantasma pois o último habitante faleceu este ano. Havia em Miranda do Douro um hospital modelar com todas as valências básicas como radiologia, unidade de parto, pequenas cirurgias. Esse hospital foi encerrado e hoje existe um centro de saúde que encerra às 21h e que mal tem condições para fazer triagem e encaminhar os pacientes para Bragança, Vila Real ou Porto.

É este o País que queremos? Vamos todos continuar a assistir à implantação desta barbaridade e a caminhar paulatinamente para o vazio? Todos sabemos que o vazio é perigoso.

Não haverá por aí políticos que oiçam o menino dizer que o Rei vai nu?

Será assim tão difícil iniciar de imediato uma reforma fiscal que reduza drasticamente o IRS e o IRC para atrair as pessoas e as empresas que queiram ir trabalhar para as regiões de baixa densidade populacional e de abandono?

Será uma dificuldade tão grande promover um efectivo registo cadastral que ao fim de meio século de democracia ainda se não conseguiu implantar? O que continua a impedir o emparcelamento capaz de garantir o mínimo de competitividade agrícola?

Temos mesmo à nossa frente o retrato de um Estado falhado. O que não augura nada de bom. Não se poderá perder nem mais um segundo com logomaquias e conversas de circunstância. Há que passar de imediato à acção concreta se ainda se quiser evitar este caminho para o abismo e inverter este desastre anunciado.

Cidadão Mirandês

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