“Era uma vez…” o manual colonial da Raiz Editora

A cada capítulo, o manual usa o intróito “Era uma vez” seguido de afirmações que são muitas vezes um condensado de glorificação nacional, romantização da violência e despolitização do colonialismo.

No quadro do Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Tráfico Transatlântico de Escravos, no passado 25 de março, António Guterres, tomou posições que muitos classificariam de woke. Reconheceu que “o legado do comércio transatlântico de escravos persegue-nos até hoje”, colocando entraves ao desenvolvimento do continente africano “por séculos” e estando na base de “disparidades de riqueza, rendimentos, saúde, educação e oportunidades” que afetam a vida dos afrodescendentes bem como do “ódio da supremacia branca que ressurge hoje”. Guterres defendeu que deveriam ser introduzidos nos currículos escolares conteúdos sobre o que foi a escravatura e as “cicatrizes” que deixou, assim como “as histórias de resistência e resiliência” à mesma, como por exemplo a da “rainha Ana Nzinga do Ndongo”.

Esta tomada de posição, embora não reconheça explicitamente o racismo estrutural, admite que o racismo tem origem no colonialismo e na escravatura transatlântica, portanto, vai para lá da lengalenga estafada de que o racismo é fruto da ignorância e do medo face ao “diferente” ou que se limita a casos pontuais ou a grupos extremistas. Mesmo que tenha sido apenas um discurso, aquelas declarações contradizem as da ministra Ana Catarina Mendes que, ainda há pouco tempo, dizia que o “racismo não é um problema estrutural” em Portugal.

O secretário-geral da ONU não afirma, contudo, que parte da desconstrução e reparação do legado da escravatura transatlântica passa, exatamente, pela recusa nos currículos escolares de uma narrativa glorificante da história colonial portuguesa. Recorro aqui ao exemplo do manual de História e Geografia de Portugal, em vigor neste ano letivo, “Era uma vez…” (5.º ano) da Raiz Editora. O manual tem o requinte de, na abertura de cada capítulo, usar o intróito “Era uma vez…” seguido de afirmações curtas que, mais do que uma síntese da matéria, são muitas vezes um condensado de glorificação nacional, romantização da violência e despolitização da história colonial.

Nesses motes, a expansão colonial é apresentada muitas vezes enquanto uma grande aventura, uma espécie de expedição científica: “Era uma vez… um povo que pretendia conhecer o mundo. Os Europeus tinham um conhecimento muito limitado da forma do mundo, dos continentes e dos oceanos” (p. 144); “Era uma vez… o povo português que adquiriu, além de um modo de vida diferente, um conhecimento mais profundo do mundo e contribuiu para o desenvolvimento dos saberes” (p. 174). Diz-se “era uma vez…o Brasil no século XVI, terra que encantou os Portugueses pela beleza das suas florestas, dos frutos e dos homens e mulheres que aí viviam” (p. 168). Uma pessoa incauta pode até pensar que a expansão colonial foi uma imensa expedição botânica e que o tal “encantamento” não foi, afinal de contas, estupro, escravatura, morte e arrebanhamento de recursos.

Considerando a dimensão económica, diz-se por exemplo que Portugal pretendia “melhorar as condições de vida dos seus habitantes” (p. 146). Ora, dito assim, “coletivizam-se” as mais-valias da colonização, ocultando-se que esta serviu, sobretudo, o enriquecimento e a fortuna de uma minoria privilegiada. Para a maioria dos portugueses, os benefícios da expansão colonial chegariam de forma indireta (pela posição geopolítica e pelo crescimento dos cofres do Estado, por exemplo). Não deixa de ser interessante que nos nossos manuais se atribua implicitamente a toda uma linhagem de camponeses, jornaleiros e de gente branca empobrecida – a maioria dos portugueses – a “epopeia” daqueles que os exploraram e oprimiram.

As pessoas negras escravizadas surgem entre as “trocas comerciais” colocadas ao nível de “produtos de origem africana”, como o marfim, malagueta, óleo de palma, algodão, ouro, desumanizando-as, mais uma vez. Esta é uma imagem presente na maioria dos manuais escolares. Neste manual da Raiz Editora não se deixa de dizer no texto que “o comércio de pessoas durou centenas de anos e foi marcado por abusos e falta de respeito pelo outro” (p. 173). Mas poderá esse reconhecimento da violência ser compatível ou real com toda a glorificação que se faz desse processo ao longo do manual? É também paradigmático que, ao mesmo tempo que se louva o pioneirismo português nas navegações, não se assinale o seu lugar cimeiro no tráfico transatlântico face a outras potências europeias entre os séculos XV e XIX; e, que, num enviesamento lusotropicalista, se prefira salientar como resultado desse processo a miscigenação ou “aculturação” (o mobiliário indo-português, a capoeira, pratos gastronómicos, etc.) e não as desigualdades estruturais e o racismo que marcam as nossas vidas ainda hoje.

Era uma vez… o manual colonial da Raiz Editora.

*Agradeço às e aos estudantes da licenciatura de Educação Básica da ESE-IPS que com as suas análises dos manuais escolares contribuíram para esta reflexão.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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