A pandemia e a geopolítica (II)

Mais do que produzir profundas alterações nos grandes equilíbrios de âmbito geopolítico, a recente pandemia reflecte e acentua tendências expressas em análises já publicadas. Segunda parte de um ensaio sobre o estado do Mundo

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trump e Xi, disputas de poder por detrás dos sorrisos Reuters/Kevin Lamarque

A supremacia mundial circunscreve-se aos EUA ou à China.

Esta, já a assumiu há séculos, mas a centena e meia de anos que decorreram até à morte de Mao Tsé Tung lançou-a num período de escuridão civilizacional, durante a qual a acção de diversos imperialismos, a profunda penetração do ópio no seu tecido social, a guerra dos boxers, as mudanças para a república e o derrube do “último imperador”, a invasão nipónica e os massacres de Nanquin, a “longa marcha” e a “revolução cultural” foram tempos de tormenta que polvilharam o “Império do Meio” com profundos ódios e ressentimentos contra os seus agressores.

Aquele interregno histórico durou até ao último quartel do século XX, fazendo coincidir então o início das “quatro grandes reformas” de Deng Xiao Ping com a consagração dos EUA como primeira potência mundial.

Renascia o “velho império”, enquanto o “mais recente” assumia a liderança global do planeta.

A China iniciava então uma consistente expansão comercial, económica e de “âncoras” que os seus investimentos e aproximações externas lhe garantiam, recusando simultaneamente qualquer proselitismo ideológico ou religioso.

Os EUA, por seu turno, edificam um sistema produtivo sem rival, universidades e centros de investigação de excelência, e um poder militar que permite conduzir operações relevantes em mais de que um ponto do globo.

Aquele, refaz um “mandarinato” plasmada na hierarquia do PCC, sustentado em Forças Armadas cada vez mais modernas, e profundamente entrosado num sistema clientelar que garante estabilidade e progresso, entronizando por isso os seus “Pudong”.

Os EUA, exibindo e promovendo não só uma sociedade plena de energia, convicções e meritocracia, que refaz a cúpula do Estado após cada ciclo eleitoral presidencial, como também uma “armada invencível” e uma indústria espacial ex-libris de uma “hiperpotência”.

A disputa pela hegemonia mundial presenciou diversos objectivos, estratégias e políticas, legitimando velocidades distintas, que permitiram uma progressiva aproximação da China aos EUA, sem que daí resultasse uma equivalência de poder.

A actual pandemia com origem na China, e, para além das obscuridades que respeitam à sua origem, à forma e velocidade de comunicação com a OMS, à violação dos Regulamentos Sanitários Internacionais, à estranheza como foi operado o confinamento do seu território, ao real número de mortos e infecções provocados, está aí praticamente debelada, tendo a vida voltado à quase normalidade, enquanto o mundo inteiro, nomeadamente os EUA ainda padecem dos seus efeitos nefastos.

O seu número de contaminados, a incapacidade do seu sistema de saúde integrar e tratar todos os que dele careciam, o gritante desencontro de orientações no seio da sua Administração superior, a rotura social que evidenciou, a quebra pronunciada de actividade económica, atestam o momento critico que atravessam e a natureza das  capacidade, organização e liderança de que dispuseram.

2020 mostra-nos uma China para quem é decisiva a vitória do modelo político que perfilha sobre a concepção ocidental, enquanto que, para os EUA é decisivo o reconhecimento da sua superioridade moral.

Só que nesta crise, o “America first ecoou excessivamente, mostrando os norte americanos fechados sobre si próprios, enquanto a China oferecia a muitos e de vários pontos do globo, apoio técnico, científico e financeiro para o combate à pandemia, estendendo-lhes a mão como expressão de solidariedade, que, mesmo calculada surgia como genuína.

Em termos comunicacionais, a China está mais próxima de ganhar esta batalha.

Em termos de relação geopolítica, a Ásia está em vantagem sobre o Ocidente, deslocando ainda mais o epicentro político-económico para o Pacífico Ocidental.

Contudo, duas circunstâncias podem ainda reverter esta expectativa, uma decorrente da acção que o presidente Trump encetou, a outra, tendo como base determinada resposta da UE à postura chinesa.

O Presidente norte-americano que colocara o seu país em vantagem com o acordo comercial celebrado com a China em Janeiro passado, entregou-se desde o início da pandemia a um exercício verbal de punição, acusando-a de responsabilidades na sua propagação mundial, e assim deverá continuar até às eleições de Novembro.

É óbvio que a “relação siamesa” que EUA e a China cultivaram durante quase duas décadas deixou de florir e a bipolaridade entre elas assume agora uma expressão só constatada antes das viagens de Kissinger e Nixon a Pequim no início da década de 70.

Ao atacar o “centro de gravidade” do seu contendor, Trump utilizou um poderoso conceito clausewitziano, já que a maior vulnerabilidade que pode atingir a China reside numa hipotética retracção económica que reduza exportações, empregos domésticos, produtividade, inovação, investimento externo, promovendo assim uma séria crise interna.

Se se quebrar a “esplendorosa normalidade” chinesa, abrir-se-ão fissuras na sua credibilidade interna e externa.

O slogan do “eterno crescimento” pode esboroar-se e fazer “perder a face” à elite dirigente chinesa, e, se isso acontecesse, iriam ser reajustados os mecanismos do exercício do seu poder doméstico e à medida da gravidade com que fosse percepcionado esse esboroamento.

Se a crise mundial imposta pela paragem da economia, for de molde a suster o progresso da China, as consequências que sofrerá podem representar “um passo atrás” na sua luta pela hegemonia mundial.

Paralelamente, dirigentes europeus expressaram reticências ao aumento da participação de entidades chinesas no capital social de algumas empresas de países da União, nomeadamente em sectores considerados estratégicos, pretendendo com isso evitar um substancial aumento de capacidade tecnológica ao serviço da China, e, bem assim a utilização do espaço europeu para a expansão dos eus negócios.

A Europa tem vindo a perceber que o Pacifico ultrapassou o Atlântico em importância, que a deslocalização de várias unidaded do seu território e a realização de investimentos no seu exterior fragilizaram alguns dos seus membros, não só na sua capacidade produtiva, como no aumento da importância de movimentos eurocéticos ou populistas, verdadeiros receptáculos políticos do descontentamento que a falta de esperança e o crescente desemprego desencadeiam.

A arrogância “eurocentrista” do século XIX transformou-se em cautelas e desconfianças, sobretudo quando constata que alguns dos seus mais relevantes adversários económicos já passaram da barbacã e estão instalados no interior do castelo.

A globalização está a ceder espaço a algumas afirmações nacionais, promovidas por vários dos seus cidadãos e concretizadas em revisões dos poderes e organizações dos próprios estados, garantindo-se-lhes maior autossuficiência e capacidade de decisão autónoma.

A China pode assim vir a tornar-se vítima desse paradigma emergente, caso ele trave o crescendo que a globalização vinha a assumir.

A disputa Sino-americana teve e terá inúmeros palcos, assistências e momentos.

Ainda não terminaram os que respeitam a este tempo de pandemia, mas já são claros e até pronunciados com alguma estridência os desejos, obsessões e instrumentos mais utilizados pelos contendores.

Revisões ao “balanço do poder” parecem ainda prematuras, mas a tendência continua a revelar uma aproximação entre os dois superpoderes em presença.

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