Depois do último Harrison da história da Medicina, alívio e preocupação com o futuro

Uma página na história da Medicina foi encerrada. Realizou-se o último Harrison, que permite o acesso à especialidade, em Portugal. Um novo modelo, mais focado em casos clínicos, vai-lhe dar lugar, no próximo ano.

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Teresa Pacheco Miranda

Terminado um dos dias mais decisivos para os futuros médicos de Portugal, um misto de sensações — entre o alívio e o desespero — transparecia nesta quinta-feira em muitos dos rostos dos 839 recém-formados em Medicina na Universidade do Porto.

Foram mais de 2700 os jovens que fizeram o último Harrison de sempre: o temido e polémico exame que dá acesso à especialidade que deverão seguir. Há 40 anos que a prova tem vindo a gerar controvérsia na área da saúde. Na generalidade, a comunidade médica e os estudantes concordam com a sua substituição por um novo modelo fortemente baseado em casos clínicos, como está previsto que seja o exame do próximo ano – a Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada.

Em contraste com o Harrison — muito baseado na memorização de cerca de três mil páginas —, o novo exame vai basear-se mais no raciocínio e avaliar o conhecimento clínico dos candidatos, abarcando novas áreas que o Harrison não incluía, como a psiquiatria, a ginecologia ou a pediatria.

“Ao contrário do que nos dizem, não aprendemos Medicina com o Harrison, mas sim no internato do próximo ano”, notou Sara Pinto, de 24 anos, no final da prova. O sentimento de que o exame já está ultrapassado e, por isso, exige uma substituição é quase geral. Mas há quem discorde. Nuno Ramos, também de 24 anos, pôs os seus conhecimentos à prova no mesmo exame que Sara. Porém, não concorda com a sua substituição. “Até tem sentido, é um exame que afere os conhecimentos daquele livro, que está lá e não é nada mais do que isso”, explicou. “A dedicação, geralmente, leva a uma boa nota.” Nos últimos meses, Nuno passou cerca de 12 a 14 horas a estudar.

Na sua generalidade, os que nesta quinta-feira foram avaliados começaram a estudar há mais de um ano, várias horas por dia. Contudo, houve quem tivesse iniciado o estudo há muito mais tempo. Foi o caso dos que repetiram o exame. Os motivos são diferentes: ou não conseguiram vaga na especialidade e no sítio que pretendiam ou a primeira nota que tiveram não lhes permitiu de todo ter acesso à especialidade. Catarina Santos, de 26 anos, faz parte do primeiro grupo. A candidata espera que com o Harrison acabe igualmente a sua fase de estudante e que este seja o início de uma nova etapa: a profissional. “Já que é o último Harrison, tentei ficar mais perto do meu objectivo”, avançou. Que objectivo? Isso não diz, não vá o azar bater à porta.

Ainda com algumas questões relativas ao primeiro exame que o vai substituir, Catarina não duvida de que a Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada vai ser benéfica para os futuros médicos. “Vai ser mais direccionada à prática médica em vez de testar quem decora melhor.” É também esta a opinião de Sara Pinto. “[O Harrison] não nos dá bagagem clínica.”

Certo é que será a nota final decidir os que entram e os que ficam de fora da especialidade. O futuro dos candidatos ficou decidido em pouco mais de duas horas e meia. Na pior das hipóteses, tornam-se médicos indiferenciados e pouco poderão fazer. No ano passado ficaram fora das listas de especialidades mais de 400 e estima-se que daqui a dois anos existam mais de 4400 clínicos indiferenciados em Portugal.

Houve ainda quem tivesse optado por esperar um ano e experimentar o novo exame. São os que têm esperança de conseguir um sistema mais justo de acesso à especialidade. Aconteceu com colegas de Catarina Santos, que acabaram o curso no mesmo ano que ela. Catarina nota, contudo: “Ninguém sabe o que aí vem.” Se correr mal, a outra opção será emigrar e exercer a profissão de médico no estrangeiro, onde os jovens não têm a pressão de uma longa lista para o acesso à especialidade.”

A nova prova terá 150 questões de escolha múltipla e durará quatro horas (com um intervalo). As questões partirão de casos clínicos e o candidato escolherá, no leque das respostas, aquela que representa a melhor forma de abordar as situações. E, em vez da bibliografia obrigatória e única, o Harrison, os candidatos passam a ter vários livros recomendados pelos quais devem estudar.

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