A falsa igualdade no acesso ao ensino superior em 2020

Enquanto aluna de um colégio, tive sempre noção de que na corrida que é o acesso ao ensino superior, partia 300 metros à frente dos meus colegas do ensino público. Desde um maior apoio na preparação para os exames às médias internas mais altas, era para mim claro que a recompensa não chegava de forma igual a todos.

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Daniel Rocha

Todos os anos, no dia das colocações no ensino superior, o Facebook enche-se dos prints dos resultados, que são recebidos em entusiasmo com inúmeros comentários de parabéns vindos de pais, amigos, amigos dos pais e até daquele familiar com quem não se falava há anos. É o dia em que todos os estudantes do país sentem que o trabalho dos últimos três anos foi recompensado. Ou assim deveria ser. Mas será que esta recompensa chega, realmente, de forma igual a todos?

Enquanto aluna de um colégio, tive sempre noção de que na corrida que é o acesso ao ensino superior, partia 300 metros à frente dos meus colegas do ensino público. Desde um maior apoio na preparação para os exames às médias internas mais altas, era para mim claro que a recompensa não chegava de forma igual a todos.

Se este fosso já é alarmante, e até muitas vezes cruel, infelizmente, este ano, assistimos a um fosso ainda maior ao nível das disparidades — provocado pela pandemia que afectou, particularmente, as classes mais baixas, aliada a um fraco apoio no ensino à distância por parte do ensino público, que se tem reflectido num aumento da procura do privado. Se estes dois pontos já eram gravíssimos no contributo para a desigualdade no acesso ao ensino superior, a gestão, por parte do Ministério da Educação, da pandemia transformou os 300 metros de desvantagem em muitos quilómetros.

A subida sem precedentes das médias dos exames nacionais levou a que os exames, outrora ferramentas importantes para suavizar o benefício a priori dos alunos do privado, deixassem de o ser. Várias medidas do Ministério da Educação podem ter contribuído para isto.

Em primeiro lugar, o facto de os exames terem passado de obrigatórios a apenas necessários para admissão à faculdade poderia explicar a subida das médias: podíamos deduzir que alunos que querem seguir o ensino superior numa certa área terão, à partida, mais aptidão para essa área e, portanto, as notas desses alunos seriam melhores. Contudo, ao analisarmos os dados do Instituto de Avaliação Educativa (Iave) relativamente ao número de provas das disciplinas em que as médias mais subiram, por exemplo Biologia, percebemos que houve um decréscimo de apenas 3% no número de alunos a realizar o exame, o que não justifica a subida da média de 3,2 valores, segundo a Uniarea. Também em Físico-Química, embora 95% do número habitual de alunos tenha realizado o exame, a média subiu, segundo a Uniarea, 3,3 valores.

O verdadeiro problema, no entanto, não é a subida das médias, mas sim a distribuição anormal das notas, que leva a que não haja diferenciação dos alunos. A medida de tornar algumas perguntas obrigatórias e outras opcionais nos exames fez com que, por exemplo, um 20 a Matemática correspondesse a acertar quatro perguntas obrigatórias (que totalizavam 7,2 valores) e apenas oito das 14 opcionais (podendo o aluno responder a todas sem penalização), tornando os 20 deste ano notas que estariam entre 14,5 e 20. A moda do exame de Matemática passou de oito, em 2019, para 19 e a de Físico-Química passou de seis para 18. Retirar o mérito aos alunos realmente bons permite que alunos com médias internas tendencialmente mais altas, tradicionalmente do ensino privado, sejam beneficiados.

No caminho para a igualdade de oportunidades, é inaceitável que, no dia em que todos os estudantes do país deveriam sentir que o trabalho dos últimos três anos foi recompensado, a recompensa seja tão injusta. Nos posts de Facebook, não deixem de dar os parabéns a ninguém, mas lembrem aos alunos que mereciam e que não entraram de quem é a responsabilidade disso.

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