Harrison e a catarse da independência

Harrison, embora fosse o mais calmo, também era o mais frustrado dos Fab Four. As suas composições eram sucessivamente recusadas pelos “irmãos” mais velhos.

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George Harrison e Ringo Starr DR

Como bem lembrou o Times no passado mês de Maio a propósito de Amy, o documentário de Asif Kapadia, o debate em volta do ano em que a música mudou o mundo é um quanto profuso. E ainda assim é bem visível a aura à volta da década de 70, esse fragoroso tempo histórico em que o edifício de devaneios dos anos 60 rompeu, sem dó nem piedade, e nos fez aceitar enquanto humanidade que não é por darmos as mãos com o sangue e o fígado mais adiposos que a paz começa a escorrer amor nos canos de um revólver. O tumulto foi ruidoso e, enquanto a primeira lei do divórcio era assinada na Califórnia, do lado de cá do Atlântico também os Beatles andavam a assinar os papéis da ruptura, colocando um fim à indolência repressora da discórdia que havia acumulado frustrações e ambições encarniçadas.

Harrison, embora fosse o mais calmo, também era o mais frustrado dos Fab Four. As suas composições eram sucessivamente recusadas pelos “irmãos” mais velhos (numa misologia só justificável à luz de um narcisismo germinado pelo sucesso) e ele próprio parecia um quanto alienado daqueles anos de roda livre e de uma fama um tanto agourenta e quase bacanal. Por isso o mundo não ficou indiferente àquele primeiro e triplo álbum que o fez questionar-se sobre o verdadeiro significado dos Beatles.

Depois de uma década a aperfeiçoar material (e depois de faixas candentes como Something terem ficado em nome do quarteto de Liverpool), All Things Must Pass foi forjado à guisa e permanece como um cinzel destinado a fazer justiça ao quiet Beatle, dando-lhe um lugar próprio e unívoco no pêndulo da história.

Foi lançado há 51 anos e até veio há pouco tempo a público uma reedição luxuosa levada a cabo pelo filho. Também por isso é uma boa altura para voltar àquelas 28 faixas (duas delas escritas a meias com Dylan), onde Harrison foi encetando a pegada com que o futuro o havia de recordar: um quanto melancólico, um quanto triste, de quando em quando um quanto hippie. Mas nada dessa declaração de independência de George sobressaiu tanto como a busca incessante pela espiritualidade, mais ou menos religiosa, cristã, budista e hinduísta, isso pouco nos deve importar a nós, que o ouvimos com o entusiasmo juvenil de quem sabe estar ali uma resposta a uma qualquer pátina oracular, a uma pergunta apenas ao alcance dos sentidos.

Porque mesmo sabendo que “por detrás de (cada) porta fechada” há sempre alguém de quem é preciso “levar as lágrimas”, a escrita de Harrison revela um desses homens desagrilhoados da ganância que se forçam a acreditar em idílios, que não se permitem entregar ao conformismo do vício pelo abandono evasivo e fugidio e que se recusam a desistir da humanidade, gritando-lhe aos ouvidos da espinha para que ela se lembre (questione) que (se) ainda tem uma.

Muito para lá da mera circunstancialidade e efemeridade dos conflitos interiores que sustentavam a música popular da new age, a escrita de Harrison é feita de estruturas morais sólidas e apelos com elas comprometidos, numa permanente dicotomia entre o material e o espiritual, demonstrativa da sua vontade de compreender verdadeiramente o que é a vida. E também por culpa desse entretecer constante com o mundo, que se revela tão curto e tão pequeno quando finalmente nos descobrimos nele, Harrison lamenta a ingratidão humana enquanto evola o desespero com a lucidez de quem sabe que, condenado à indecisão pensante e rútila, há que ter cuidado com as trevas porque raramente se susta um passo em falso depois de o iniciar.

Por aqui se percebe que não é tanto a técnica que merece a tinta da crítica ao Beatle que sempre procurou qualquer coisa para lá da fama e do sucesso. É certo que todos aqueles reverbs e overdubs tornaram a sua sonoridade identificável aos pingos da chuva, nem melhor nem pior, antes única e irrepetível. Podem-se pintar páginas sobre o blues slide, a sonoridade sinfónica e pastoral, as influências orientais ou o Wall of Sound, que fez guitarras serem tão litúrgicas quanto uma pétala frágil numa primavera amena. Mas o bálsamo que fica a cada audição de Harrison é aquela capacidade de ancilosar um estilo espelho de uma personalidade e visão própria do mundo, de uma busca interior pela liberdade, pela paz e pela transcendência.

Escrever sobre a música de Harrison é esse múnus ingrato, não por qualquer controvérsia à volta da personagem que a produz, mas porque a essência e a profundidade que queremos elevar aos pedaços de papel são como que imanentes a uma sonoridade celeste e iluminadora de cavernas, precipitando-nos para lá das fronteiras paralisantes que o medo nos impõe.

Pode ser misticismo ou uma capacidade varonil de soçobrar numa procura pela luz num mundo cada vez mais negro, onde a eterna e derradeira esperança é estarmos tão somente de passagem. Deixar-nos momentaneamente na dúvida é o grande legado da suba obra.

Hare Krishna.

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