Humano, demasiado humano

Luís Vasconcelos, um dos primeiros editores de fotografia do PÚBLICO e antigo fotógrafo da presidência da República, via em Soares a encarnação de um espírito verdadeiramente livre.

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A balbúrdia assanhada era tanta que Luís Vasconcelos tem dificuldade em exprimir por palavras “o ambiente pesado” que se viveu à volta do então Estádio do Inatel, em Lisboa, no célebre e muito agitado segundo 1.º de Maio do pós-25 de Abril. “Deve haver para aí fotografias minhas dessa altura” atalhou um dos primeiros editores de fotografia do PÚBLICO olhando para uma pilha de pastas onde se guardam algumas das milhares de imagens dos primeiros anos do jornal.

Pedimos-lhe que voltasse a esse arquivo para uma curta selecção de imagens de Mário Soares e, à medida que as provas em papel foram desfiando nas suas mãos, o antigo repórter recordou o primeiro momento em que o então ministro Sem Pasta do IV Governo Provisório ficou não apenas registado na sua câmara, mas, sobretudo, na sua memória.

Aconteceu nesse Dia do Trabalhador de 1975, o momento em que, depois de o PS ter vencido as eleições, quando Soares se apresentou nas traseiras do estádio (gorada a tentativa de chegar à tribuna pela porta principal para discursar). “Havia uns soldados a tentar protegê-lo no meio daquela agitação toda, mas ele seguia impávido, entre apoiantes e opositores a que ele entrasse… agia com se nada fosse. Era supercorajoso.” E mesmo quando os portões se fecharam definitivamente para ele naquele sítio, Soares acabou por falar à janela de um rés-do-chão nas imediações do estádio, lembra Vasconcelos. O repórter tinha seguido o líder socialista até essa casa e, para além da atitude destemida no meio da multidão, ficou impressionado com a “tranquilidade” com que ele discursou, momentos depois de ter estado no meio de um ambiente hostil e muito tenso. “Percebi com o tempo que aquela atitude não tinha sido circunstancial, mas uma característica intrínseca dele, estivesse a falar com quem quer que fosse.”

Os caminhos de ambos voltariam a cruzar-se ainda durante o Verão Quente de 1975, na edição de um número especial do jornal República (à época um dos poucos órgãos de informação não comunista) que denunciava a invasão e ocupação do jornal por parte da comissão de trabalhadores daquele título, acusado de ser próximo do PS. Foi nessa altura que fotógrafo e político travaram conhecimento, mas passaria mais de uma década até que voltassem a trabalhar com mais proximidade, o que aconteceu na campanha presidencial de 1985, ao lado de Alfredo Cunha, repórter com quem dividiu vários outros desafios profissionais. “Uma coisa extraordinária de Mário Soares em relação a nós e à fotografia foi que nunca nos deu qualquer indicação em relação à publicação de certas imagens. Nunca nos impôs o que quer que fosse em relação a qualquer fotografia publicada dele. Nem na fotobiografia, nem nos livros que a Presidência editou.”

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Luís Vasconcelos Ricardo Lopes

Não é de estranhar uma atitude como esta em quem, como ele, combateu uma ditadura alicerçada em práticas censórias de todo o tipo. Como também não se pode estranhar a liberdade que dava aos fotógrafos que o acompanhavam para testemunharem e traduzirem em imagens momentos mais circunscritos. “Ouvimos muitas conversas às quais não deveríamos ter acesso. Mas ele não se importava. Nessas ocasiões, pude verificar como falava de igual para igual com os maiores líderes mundiais. Era assertivo. Podia estar certo ou errado, mas tinha uma posição no mundo e uma posição sobre o mundo.” Vasconcelos acentua essa maneira de estar descomplexada de Soares perante os outros e a sua capacidade de perspectivar Portugal para além do estigma do “país pequenininho”: “Soares provocava o orgulho de se ser português.”

Certo é que para lá de todos os atributos, líderes políticos de primeira linha dificilmente escapam à saturação mediática, que tende a criar meras efígies, figuras alegóricas. Nesse turbilhão, a maioria das imagens pouco mais faz do que projectar sombras que escondem seres de carne e osso. E poucos são os que conseguem sair desse enredo, impedir que a sua imagem os preceda e que descole totalmente de si. Mário Soares, como bem testemunham estas fotografias, não permitiu que as imagens o aprisionassem numa qualquer ficção, que o projectassem como uma alegoria; ou que o representassem sem o seu agir genuíno, a manifestação da sua mais profunda identidade, da sua mais desarmante humanidade.

Luís Vasconcelos via em Soares a encarnação de um espírito verdadeiramente livre, mais próximo da fisicalidade do que da planura etérea ou da pose estadista (que Soares também foi capaz de personificar). “Ele era sobretudo uma pessoa. Uma pessoa que adormecia, que se zangava, que se ria. Tem obviamente uma faceta que vai para além da pessoa comum, pela figura histórica que se tornou, pelo que representou para o país. Mas acho que Mário Soares ainda gera tantos amores e ódios um pouco por causa disto: pelo facto de ser uma pessoa.”

E foi divertido privar com alguém assim? “Foi muito, foi superdivertido.”

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