Interpelação a dois Alfredos sobre Mário Soares

A posição central de Mário Soares na divisão da esquerda portuguesa nunca ficou cabalmente esclarecida.

Houve há pouco tempo uma sessão de homenagem a Mário Soares no Museu do Aljube, onde dois dos principais oradores eram, segundo o programa, Alfredo Barroso e Alfredo Caldeira. Certamente duas das pessoas que mais tempo passaram com o fundador e patrono do Partido Socialista. O primeiro, com laços familiares, como seu assistente desde o 25 de Abril de 1974 até ao fim do seu segundo mandato na Presidência da República, na chefia da Casa Civil. O segundo como um dos seus principais colaboradores na Fundação com o seu nome, no trabalho meritório, entre outros, de recolha e tratamento de arquivos de várias figuras importantes da oposição ao regime fascista de Salazar, nomeadamente no que respeita à luta dos movimentos de libertação das colónias portuguesas.

Acontece que conheci os dois de perto, o primeiro no Colégio Moderno, onde aprendi as primeiras letras, o segundo no final do ensino secundário no Liceu Camões, no início dos anos 60, onde recebi os primeiros rudimentos da política e tomei consciência da necessidade de lutar contra as mais flagrantes injustiças que existiam, e continuam a existir, em Portugal e no mundo. O que ficaria para toda a vida.

Cheguei a pensar por isso ir à referida sessão para questionar os dois Alfredos no que respeita às posições que Mário Soares tomou depois do seu regresso a Portugal em 25 de Abril de 1974, que foram alvo de fortes críticas da esquerda em Portugal e na Europa. Mas como se tratava de uma sessão de homenagem, achei que não era o momento apropriado. Todavia, faço-o agora porque a história constrói-se também com o testemunho vivo daqueles que participaram nos acontecimentos. É que a posição central de Mário Soares na divisão da esquerda portuguesa, para mim e para muitos outros, nunca ficou cabalmente esclarecida. E a esse propósito saiu um artigo meu neste jornal, em 12 de Julho de 2007, com o título “O PS, a adesão à CEE e a relação com o PCP”, onde questionava o principal dos fundadores do Partido Socialista sobre as afirmações que tinha feito no Dia da Europa desse ano no CCB. Tendo estado presente na sessão, ouvi Mário Soares dizer que ao regressar a Portugal trazia já a intenção de lutar pela integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia. Como não houve lugar a perguntas e respostas no final, resolvi escrever o referido artigo.

Acontece que no dia 25 de Abril de 1974, como outros mais, ao ouvir os primeiros comunicados do MFA pensei que se tratava de um golpe militar de Kaúlza de Arriaga. Como tinha em casa o programa do Partido Socialista, recém-criado (que um provável militante do Partido Comunista me tinha passado), assim como outros documentos sobre os movimentos de libertação das colónias, fui queimar esses papéis comprometedores, num contexto que naqueles momentos iniciais se me assemelhava à do golpe que seis meses antes tinha acontecido no Chile. Regressado havia três anos de uma comissão militar em Moçambique (onde nunca encontrara sinais de um possível movimento de militares do quadro contra o regime), trabalhava na General Motors e frequentava o Sindicato dos Empregados de Escritório em Lisboa. Participara em todos os comícios que o Movimento Democrático Português realizara na margem sul do Tejo durante a campanha eleitoral para as eleições da Assembleia Nacional em Outubro de 1973. Com os teatros completamente cheios e a subida ao palco de muitos antifascistas que tinham estado presos, inclusivamente no Tarrafal. Onde se ouviu pela primeira vez em público o disco do Avante Camarada cantado pela Luísa Basto. E em que algumas das sedes do MDP/CDE só seriam encerradas pelas autoridades em Fevereiro de 1974, muito mais tarde que em outras regiões do país.

Ora, o programa do Partido Socialista era quase uma cópia daquele que o Partido Comunista mais tarde fez vir à luz do dia, onde se falava do fim dos grandes monopólios, da reforma agrária e da necessidade de pôr um termo à guerra colonial. E aqui transcrevo a pergunta que o jornalista do PÚBLICO, editor do meu artigo de 2007, destacou: “O secretário-geral do PS regressou ao país com a intenção de aplicar não o programa do seu partido mas uma política diferente?” Assim parecia quando Mário Soares começou a dizer que se estava a preparar um novo “Golpe de Praga” de 1948. E nós, nos partidos que tinham lutado no terreno, apenas pretendíamos a unidade da esquerda contra o fascismo que, como era previsível e se verificaria em 28 de Setembro de 74 e 11 de Março de 75, não iria facilmente desistir de retomar o poder. Daí o perigo das posições de partidos que se diziam de esquerda como o PS, acompanhado do MRPP, ao fazerem do MFA e do Partido Comunista o seu principal inimigo. Precisamente aqueles que teriam a força suficiente para se oporem a uma reversão da situação como no Chile de Allende. Não tive a menor dúvida de que a aliança Povo-MFA era a política certa. Foi pois a primeira vez que numa possível situação de Frente de Esquerda, desde a Guerra de Espanha até ao derrube de Allende, um partido socialista preferiu aliar-se à direita e à extrema-direita invocando uma tomada de poder por um partido comunista seguidor da linha de Moscovo, contrária a aventureirismos latino-americanos ou de outras origens, no preciso momento em que se assinavam os tratados de Helsínquia depois de vários anos de conversações entre os principais protagonistas da Guerra Fria. O próprio Mário Soares confessa nas suas memórias que Brejnev lhe assegurou não haver qualquer intenção dos comunistas tomarem o poder. Como já o havia feito ao Presidente Costa Gomes.

A questão fica pois pendente de uma resposta clara, que deixo a estes dois amigos, Alfredos, como a tinha posto a Mário Soares em 2007, que não me respondeu. Qual a verdadeira razão da táctica do PS de Mário Soares depois do 25 de Abril, já que o PCP não pretendia de modo nenhum nem tinha condições para tomar o poder? Receio da extrema-esquerda? Esta era forte, mas numa situação de frente de esquerda em que entrariam o PCP e o PS, que era o desejado até por alguns desses pequenos partidos, não haveria lugar senão para um confronto ideológico residual. E poderíamos ter sido uma nova Jugoslávia aqui neste canto da Europa (não considerando o dramático desenlace final desse país, muito por culpa de alguns Estados da União Europeia e da NATO), com uma economia florescente, investimentos de várias origens do globo e um nível de educação superior, com resultados significativos na prática desportiva e artística, estendidas à maioria da população. O próprio gigante General Motors, onde eu era funcionário, estava presente naquele país, tendo um colega meu na altura ido para lá trabalhar durante alguns anos. Acresce que na Europa a esquerda, naquele tempo, era muito forte, especialmente em França, onde Miterrand seria eleito Presidente em 1981, levando para o governo quatro ministros comunistas. Em Itália, a foice e o martelo, significativamente, fizeram parte da bandeira do Partido Socialista até 1978, quando Bettino Craxi tomou conta do partido. Na Alemanha, Willy Brandt, e no Reino Unido, Harold Wilson, seriam incapazes de se aliar à extrema-direita, como Soares fez em Portugal, com os ataques e o terrorismo desencadeado contra os partidos de esquerda, com o alto patrocínio de Spínola.

Depois, o pântano em que caímos pouco tempo após o 25 de Novembro de 1975, que dura até hoje, em que nos colocaram os partidos vencedores daquele pronunciamento.

Não será o facto da promiscuidade do PS com a direita e a extrema-direita desde as origens da democracia em Portugal que nos fez chegar a este ponto? É o que me faz pensar que o caminho seguido pelo país não terá sido o mais correcto.

E a nível internacional, se tivéssemos ficado numa posição neutral, como a Jugoslávia, em relação aos dois contendores da Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética (e tivemos vários momentos em que o poderíamos ter feito), isso não teria sido impeditivo de entrarmos na União Europeia e beneficiarmos dos seus importantes investimentos nas infra-estruturas, que mudaram a face de Portugal. Mesmo com Soares ao leme, no governo, demorámos mais de dez anos para lá entrar. E quando Portugal chegou à CEE já lá se encontrava a Irlanda, país neutro. Mais tarde entraram a Finlândia, a Áustria, a Suécia e Malta, todos com o estatuto de países neutrais.

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