O Marcelo é um Soares em 78 rotações

Alfredo Cunha conheceu Mário Soares no dia em que este chegou do exílio e foi depois seu fotógrafo oficial nos dois mandatos como Presidente da República. Quem acompanhou, como ele, as célebres presidências abertas, sabe que "Marcelo não inventou nada".

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Roma, Itália, 1988 Alfredo Cunha
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Rio Maior, 1989 Alfredo Cunha
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Guimarães, presidência aberta, 1986 Alfredo Cunha
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Viseu, presidenciais, 1985/86 Alfredo Cunha
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Ginásio Clube Português, Lisboa, 1989 Alfredo Cunha
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Comício na Fonte Luminosa, Alameda, Lisboa, 1975 Alfredo Cunha
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Festejos do S. João Porto, 1992 Alfredo Cunha
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Base Naval do Alfeite, Almada, 1978 Alfredo Cunha
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Chegada a Lisboa a 28 de Abril de 1974, depois do exílio em Paris, Alfredo Cunha
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Palácio de Belém, Lisboa, 1987 Alfredo Cunha
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Lisboa, 2017 Alfredo Cunha
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Ilha de Faro, 1991 Alfredo Cunha
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Lisboa, 1986 Alfredo Cunha

Fotógrafo oficial de Mário Soares durante os seus dois mandatos como Presidente da República, de 1986 a 1996, Alfredo Cunha conheceu aquele que se iria tornar o seu mais recorrente modelo há quase 44 anos, no dia 28 de Abril de 1974. Cunha era então um jovem repórter de O Século e passara os dias anteriores a fotografar a Revolução dos Cravos, com a qualidade e originalidade que veio a ser-lhe reconhecida, e que está hoje abundantemente documentada em livros como O Dia 25 de Abril de 1974: 76 Fotografias e Um Retrato (1999) ou o mais recente Os Rapazes dos Tanques (2014), ambos com texto de Adelino Gomes.

Quando se soube que Soares regressaria no dia 28 de Abril do seu exílio em França, no comboio “da liberdade”, como mais tarde lhe chamariam, O Século enviou Alfredo Cunha para o ir esperar à fronteira de Vilar Formoso. E aqui convém lembrar que o fotógrafo tinha 20 anos, que Soares vivia em Paris desde 1970, e que o seu rosto hoje tão célebre não era propriamente presença habitual na censurada imprensa portuguesa. “Quando o comboio chegou, dirigi-me a um senhor e perguntei-lhe se me sabia indicar quem era o Mário Soares”, conta Alfredo Cunha. O senhor sabia: era ele mesmo. Foi o ponto de partida de uma colaboração de décadas, quando não, para citar a célebre deixa final de Casablanca, o início de uma bela amizade.    

“Subimos para a carruagem, onde vinha também a Maria Barroso, e ali viemos durante aquelas horas todas que o comboio demorou a chegar a Santa Apolónia”. A ideia era entrevistar Mário Soares para O Século, mas “a maior parte do tempo”, diz Cunha, “foi passada a responder às perguntas dele, que queria saber como tinha sido o 25 de Abril”.

Chegados a Santa Apolónia, Cunha foi rendido por outro fotógrafo e despediu-se do político, que lhe recomendou que aparecesse. “E eu apareci mesmo: fiz muitos trabalhos para ele e para o PS”. Mas depois tornou-se fotógrafo oficial do Presidente Ramalho Eanes, entre 1976 e 1978, e a relação profissional com o então já primeiro-ministro socialista sofreu um interregno.

O regresso dar-se-ia com a primeira campanha presidencial de Soares, o depois chamado MASP I, em 1985. Um regresso definitivo – “desde Junho de 1985 até ao dia do seu funeral, nunca deixei de o fotografar”, garante Cunha –, mas que até começou com um falso arranque. “Eu e o Luís Vasconcelos fazíamos campanhas políticas para ganhar dinheiro e oferecemo-nos para fazer a do Soares, mas fomos recusados pelo [director de campanha] comandante Gomes Mota”.

Pouco depois já estavam a trabalhar, a convite de Maria Elisa, na campanha de Freitas do Amaral. “Fizemos o primeiro cartaz de Freitas, o ‘Prá Frente Portugal’, e soubemos mais tarde que o Soares o elogiou e quis saber quem o tinha feito”. Resultado: o cineasta Mário Barroso, sobrinho de Maria Barroso, foi logo buscá-los à campanha rival.

“Com o Freitas ganhávamos o dobro, mas preferíamos o Soares, que era da nossa área política”. E Alfredo Cunha nunca se arrependeu da decisão. “Foi fantástico: ao fim de muito pouco tempo, tanto eu como o Luís já éramos muito amigos dele, e o Soares era um bom amigo, se tínhamos algum problema, ele interessava-se mesmo”. Talvez por isso, mesmo depois de o Presidente terminar o seu segundo mandato, em 1996, manteve-se sempre disponível para o fotografar. “Ele continuava a dar-me ordens, ligava-me para Vila Verde [a terra, próxima de Braga, onde Cunha mora] e dizia: ‘Ó pá, estou aqui com uns amigos e tens de cá vir tirar uma fotografia’; e eu lá ia”.

Nessa década em que acompanha as célebres presidências abertas de Soares, que começam em Guimarães, em 1986, e depois se alargam a todo o país, de Trás-os-Montes ao Alentejo ou aos Açores, Cunha tem a oportunidade de testemunhar, e registar fotograficamente, a naturalidade, mas também o talento, com que Soares lidava com as pessoas. “Ele é que criou esse conceito da Presidência de proximidade, o Marcelo não inventou nada”, diz. “Sou amigo dele, e tenho por ele uma grande consideração, mas o Marcelo é um Soares em 78 rotações”.

O Presidente socialista era espontâneo, mas “sabia-a toda”, garante o fotógrafo. “Nas manifestações, estava sempre a ver onde nos encontrávamos, para perceber qual era o ângulo ideal para o fotografarmos”, conta. “Tinha boa cobertura mediática, mas também a geria muito bem”.

Entre os serviços que Cunha e Vasconcelos espontaneamente lhe prestavam incluía-se a de lhe “mandar umas flashadas sempre que adormecia em público, para o acordar”. Já eram menos complacentes com a sua conhecida atracção por livrarias e alfarrabistas, que fazia questão de visitar onde quer que fosse. “Aí toda a gente fugia, porque quem estivesse mais perto ia carregar com os livros”.

Cunha também elogia a intuição de Soares em matéria de fotografia. “Um dia íamos a passar perto da praia e disse-me: ‘Sai do carro, que vamos fazer um cartaz, tens cinco minutos’”. Era em Setembro de 1985, em plena campanha para a primeira volta das eleições presidenciais, que se disputaria em Janeiro do ano seguinte. “Foi uma ideia dele: começou a andar na praia, eu fotografei-o e saiu o cartaz ‘A Coragem Serena’, que ainda hoje é uma das grandes fotos dele”.

Quando olha para trás, o repórter continua a admirar Soares por “ser um democrata”, mas confessa: “Eu gostava dele era pelos defeitos: os ataques de fúria, as irritações, as bocas injustas, como quando me perguntava se a máquina tinha rolo”. E nesse ponto até tinha, admite, alguma razão. “Numa das primeiras fotos oficiais que lhe fiz, já ele era Presidente, o Soares, às tantas, pergunta: ‘Então esse rolo não acaba?’. Estava a fotografar sem rolo, ele quase me batia”.   

Para lá da “máxima consideração” que o ex-Presidente lhe merece, e da amizade que lhe devotou até ao fim, Alfredo Cunha não hesita em afirmar: “Divido a minha vida profissional em duas partes: antes e depois de ter conhecido Mário Soares”. A segunda parte, a mais extensa, está à vista de todos, nos vários livros que dedicou a Soares, incluindo a recente fotobiografia lançada em 2017 pela Porto Editora. “O livro começa com uma imagem dele com a Maria Barroso e acaba com outra fotografia dele com a Maria Barroso, porque ela foi sempre o fiel da balança, o grande equilíbrio da sua vida”.

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