Sobre o "neoliberalismo fantasmagórico"

Se o Estado sucumbir perante a economia de mercado, será impossível construir uma sociedade diferente com elevados índices de desenvolvimento humano.

A maioria dos articulistas de direita com coluna posta nos jornais, como é o caso de João Miguel Tavares, articulista do PÚBLICO, não querem reconhecer que o PPD/PSD de Passos Coelho virou radicalmente à direita, e recusam-se a admitir que as políticas postas em prática pelo Governo Passos/Portas eram oriundas do mais puro e duro neoliberalismo. João Miguel Tavares fala mesmo em “neoliberalismo fantasmagórico”, com a arrogância que costuma caracterizar a ignorância atrevida.

Sucede que, tal como o estalinismo foi a forma mais perversa que o comunismo assumiu, também o neoliberalismo foi a forma mais perversa que o capitalismo assumiu.

Ao neoliberalismo pouco importa o aumento contínuo das desigualdades, em resultado do seu projecto de redistribuição das riquezas baseado na acumulação, por espoliação e esbulho das classes populares e boa parte das classes médias, reencaminhando essas riquezas da base para o topo da hierarquia social.

Para o conseguir, impõe a “financeirização” da economia e a extensão da concorrência a praticamente todos os domínios da vida em sociedade, através da desregulação, das privatizações, do desmantelamento do Estado social, dos cortes brutais nos salários, pensões e prestações sociais de todo o tipo, e das políticas fiscais dos Estados que a plutocracia passou a controlar.

Ao invés do que muitos supõem, o neoliberalismo não pretende suprimir o Estado. Pretende, isso sim, reconfigurar e reorientar as suas acções, tornando-o um instrumento privilegiado de defesa e dominação do capital, intervindo continuamente para criar um ambiente institucional e um clima favoráveis ao lucro.

Aos neoliberais pouco interessa o enriquecimento da colectividade, interessa sobretudo o enriquecimento de alguns. O neoliberalismo não é uma doutrina do bem comum, mas da defesa os interesses da classe que é hoje dominante, cujos privilégios foram restaurados a partir da contra-revolução iniciada na década de 1980.

Como explica com clareza David Harvey, no seu livro A Brief History of Neoliberalism (Oxford University Press, 2005): “Menos do que uma filosofia política (o pensamento porventura utópico de Hayek e dos seus discípulos), a neoliberalização deve ser analisada como a realização pragmática de um projecto político que visa restaurar o poder das elites económicas. Elites essas que viveram os anos 1970 com angústia face à expansão dos movimentos sociais e, sobretudo, face ao decréscimo dos rendimentos do capital”.

Os políticos e tecnocratas defensores da via neoliberal ocupam hoje posições que lhes permitem exercer uma influência considerável, tanto nas universidades e grupos de reflexão, como nos órgãos de comunicação social, nos conselhos de administração das empresas e das instituições financeiras. E quer em órgãos de Estado cruciais – como os ministérios das Finanças e os bancos centrais - quer em instituições internacionais – como o FMI, o Banco Mundial ou a OMC – incumbidas de regular a finança e o comércio à escala mundial. E ainda, quer na Comissão Europeia quer no Banco Central Europeu, aliados fidelíssimos do Fundo Monetário Internacional.

Perante este breve quadro explicativo da realidade actual, não será difícil perceber que Portugal foi, sobretudo durante os quatro anos de Governo PPD/PSD-CDS/PP, um exemplo flagrante de aplicação de políticas neoliberais que empobreceram o país e milhões de portugueses, e que apenas enriqueceram algumas centenas de plutocratas.

Foi em consequência dessas políticas neoliberais impostas pela “troika” que se tornou extraordinariamente difícil a criação de emprego a curto e a médio prazo. Aliás, todas as empresas, inclusive aquelas que funcionam melhor e se dedicam à exportação, têm diminuído, ano após ano, o número de postos de trabalho. Argumentam que a “competitividade”, horizonte ideológico do neoliberalismo, é essencial para garantir o crescimento da economia, e este baseia-se, essencialmente, numa taxa de desemprego de dois dígitos e numa significativa diminuição dos salários.

Como escreveu Slavoj Zizec, “o capitalismo actual move-se segundo uma lógica de apartheid em que alguns, poucos, se sentem com direito a tudo, e a grande maioria é constituída por excluídos”. Ora, é preciso lutar contra esta lógica de apartheid, contra uma economia baseada no medo e na exploração, contra o poder despótico dos mercados financeiros que nos impuseram um estado de excepção permanente, contra o neoliberalismo de Estado e a ditadura financeira de fachada democrática praticada pela direita.

Se o Estado sucumbir perante a economia de mercado e se alhear da necessidade de incentivar uma verdadeira economia social em que a rentabilidade e o lucro deixem de ser os padrões dominantes, será impossível construir uma sociedade diferente com elevados índices de desenvolvimento humano. Como afirma Jeremy Rifkin, sem uma economia social forte, não pode haver um governo forte nem mercados fortes.

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