Morreu o jornalista Oscar Mascarenhas, "um agitador no bom sentido"

Tinha 65 anos. "Já não se fabrica gente com tão mau feitio", recorda a amiga e colega Diana Andringa. O corpo estará na quinta-feira na capela mortuária São João de Deus, e será cremado no dia seguinte, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

Foto
Oscar Mascarenhas ao centro Eduardo Madeira/Arquivo

O jornalista Oscar Mascarenhas, membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, morreu na manhã desta quarta-feira, vítima de ataque cardíaco. A presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco, recorda a “personalidade forte”, o "agitador" no "bom sentido", que não tinha medo da polémica: “Não se importava muito com o que os outros pensavam dele. Estava sempre disposto a bater-se pelas suas ideias, às vezes nem sempre consensuais.”

A informação da morte do jornalista, confirmada pelo PÚBLICO, foi avançada pelo Diário de Notícias, um dos órgãos de comunicação social onde trabalhou e do qual foi Provedor dos Leitores. Jornalista reformado e professor da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa, Oscar Mascarenhas integrava o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, órgão do qual já tinha sido presidente. Nascido em Goa (Índia) a 9 de Dezembro de 1949, iniciou-se no jornalismo em 1975, no diário A CapitalTrabalhou ainda no Página UmJornal do Fundão e Agência Lusa.

Sofia Branco não tem dúvidas de que vai fazer falta ao jornalismo: “Era uma pessoa muito activa. Era muito provocador, um agitador, mas também no bom sentido. Isso faz falta, as redacções precisam disso e hoje têm pouca agitação, pouca crítica”.

A presidente do Sindicato admite que foi apanhada de surpresa com a notícia da morte do colega: “Ainda ontem à noite tínhamos estado a trocar emails, para trabalharmos numa posição conjunta sobre a lei da cobertura eleitoral”, conta. Para Sofia Branco, o antigo provedor do DN representava ainda a “memória” e a “experiência”. “Tinha uma grande bagagem, mesmo ao nível da deontologia. Tinha uma experiência e uma cultura que lhe possibilitavam uma análise muito aprofundada.”

Para a actual presidente do Conselho Deontológico do Sindicato, São José Almeida, Oscar Mascarenhas era e continuará a ser “uma referência no jornalismo português”. Recorda que o conheceu de “forma mais pessoal” no Conselho Deontológico, onde Oscar Mascarenhas regressou como vogal, com “a humildade” de quem regressa a um órgão do qual já tinha sido presidente. Destaca a “capacidade e qualidade de reflexão raras sobre o jornalismo”, com as quais contribuía para a “reflexão dos outros”. “Era uma pessoa polémica, frontal, não fugia a uma discussão, pelo contrário, gostava de discutir os assuntos até ao fim e isso era uma qualidade rara num país onde as pessoas às vezes têm medo de debater os assuntos”, diz São José Almeida.

Sem "curvaturas de espinha"
A jornalista Diana Andringa, que também foi presidente do Sindicato dos Jornalistas, conheceu-o muito bem “como sindicalista e como jornalista”. “Já não se fabrica gente com tão mau feitio. E tão capaz de não ter curvaturas de espinha”, diz, acrescentando que tinham uma “excelente relação”.

Nos corpos do Sindicato, onde se cruzaram, colaboraram “imenso”. Também chegaram a estudar juntos, na primeira pós-graduação em jornalismo em Portugal, no final de década de 1990, uma parceria entre o ISCTE e a Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa. Na turma, constituída por alunos já “de cabelos brancos” e outros mais jovens, Mascarenhas conseguiu unir “toda a gente”, em almoços e jantares. “Era uma pessoa com uma capacidade de convívio extraordinária”, nota Diana Andringa, recordando que o jornalista teve nesse curso a melhor nota, seguindo depois para mestrado, onde volta a destacar-se com uma tese intitulada O detective historiador, o jornalismo de investigação e a sua ética.

Diana Andringa não esconde que o amigo era “resmungão até mais não”. Discutiam bastante sobre jornalismo, questões éticas. Mascarenhas terminava as discussões acesas com a mesma frase: “Viva a liberdade sempre”. Quando foi provedor do DN, era Andringa quem lhe dizia, sobre as crónicas: “Que não se te cansem as mãozinhas.” Admite que o jornalista tinha um “feitio que, por vezes, se tornava difícil”, era “teimoso”: “Mas era uma excelente pessoa, generosa. E um excelente professor, os alunos gostavam imenso dele. Um excelente jornalista, um excelente cronista, um comentador de alto nível, que escrevia muito bem, com muito humor. E foi um sindicalista sempre com o mesmo espírito combativo. Uma voz muito livre”, recorda.

Apesar de não lhe poupar elogios, a jornalista sabe que Oscar Mascarenhas “não deixava ninguém indiferente, que era mordaz, violento nas críticas”: “Presumo que haja pessoas que não o possam ver”.

Não é o caso de Diana Andringa, apenas dois anos velha: “Eu gostava muito do Oscar, mesmo quando discordávamos. Ele dizia-me ‘Ó velha, mas por que é que estás a tomar esta atitude?’”. Se notava que a amiga estava com uma voz triste, desafiava-a logo para um almoço. Dizia-lhe: “Tu não estás bem, vamos almoçar.”

A última vez que almoçaram foi há cerca de dois meses. Oscar Mascarenhas contou-lhe que estava a escrever dois livros, “aproveitando investigações que tinha feito”: “Eram assuntos sérios, mas com o habitual sentido de humor.” Nesse dia, estava bem-disposto, Diana Andringa não esconde que foi apanhada “completamente de surpresa” com a notícia da morte do amigo.

“Não haverá um novo Oscar
Também o jornalista e antigo presidente do Sindicato dos Jornalistas, Alfredo Maia, o conheceu “muito bem”. “Éramos amigos há muitos anos. Estivemos juntos muitos anos nos órgãos do Sindicato. Conhecemo-nos em 1987, quando nos candidatámos na mesma lista”, recorda, ressalvando que nessa altura quem ganhou foi a lista de Joaquim Letria.

Em 1996 haveriam, porém, de trabalhar juntos: “Ele era presidente do Conselho Deontológico, eu era vice-presidente do Sindicato, a presidente era a Diana Andringa”, lembra Alfredo Maia. “Trabalhámos os dois muito, em intervenções comuns. Nessas duas vertentes que eram a defesa da liberdade de imprensa e dos direitos e deveres dos jornalistas. Eram duas ‘capelas’, dois mandatos que se complementavam, eu nos direitos, ele nos deveres. Cooperámos sempre na discussão dos problemas”, conta o jornalista que, mesmo nas fases em que Oscar Mascarenhas não esteve no Sindicato, trocava impressões e aconselhava-se com ele.

“Era verdadeiramente um homem irrepetível. Um grande jornalista, está na galeria dos nossos maiores. Em relação à deontologia e ética, era uma voz de uma consciência crítica muito reflectida, muito pensada, muito ilustrada, porque era um homem cultíssimo”, nota o antigo presidente do Sindicato, para quem Oscar Mascarenhas “tinha uma noção de lealdade inabalável, uma camaradagem à prova de bala”. “Mesmo quando parecia que era mais severo nas críticas em relação ao comportamento dos jornalistas, fazia-o com uma enorme solidariedade e uma profunda consciência das condições em que os jornalistas exerciam a profissão, as condições de produção que condicionam muitas vezes o nosso trabalho no dia-a-dia. Era profundamente conhecedor das dificuldades dos jornalistas.”

Ainda na terça-feira falou com o amigo ao telefone. Foi também por isso com “choque” que recebeu a notícia: “É uma perda irreparável. Parece um lugar-comum, mas esta é mesmo uma perda irreparável no jornalismo, no sindicalismo e no ensino da deontologia. Não haverá um novo Oscar. Embora conheça muitos ex-alunos dele que são a evidência viva das lições extraordinárias que ele nos deixou a todos.”

Ribeiro Cardoso que, entre outros cargos, foi vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas de 1987 a 1989, destaca as mesmas qualidades jornalísticas e a mesma personalidade, mas admite que nem sempre esteve de acordo com o colega quer em questões sindicais, quer políticas. “Tínhamos posições diferentes perante a vida e a política, mas talvez tivéssemos posições muito parecidas em relação ao exercício da profissão”, diz, salientando que Oscar Mascarenhas, não sendo uma pessoa de “trato fácil”, “lutava pelas suas ideias com muita força”.

"Desafiador"
“Tinha um estilo muito próprio, era muito culto, truculento nas posições que tomava. Frontal e sempre muito bem informado, o que era muito desafiador, porque nos obrigava a refinar os argumentos, quando não concordávamos com ele. Era assim tanto nas relações pessoais, como nas suas posições públicas. Eu apreciava isso tanto quanto me irritavam as posições dele, mas era estimulante”, acrescenta Adelino Gomes que, entre muitos outros cargos, foi director-adjunto do Público e provedor do ouvinte da RDP e agora é professor na Universidade Autónoma de Lisboa e investigador associado do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa. 

“Amicíssimo há muitos anos” de Oscar Mascarenhas era o jornalista, já reformado, Rogério Vidigal: “Encontrávamo-nos muitas vezes para conversar, comer, beber, celebrar a vida. Era uma voz incómoda, um homem notável, de uma cultura fantástica, generoso. É muito difícil descrevê-lo. É uma perda muito grande para os amigos e para o jornalismo português."

Oscar Mascarenhas chegou a estudar Direito, passou pela Força Aérea, mas acabou no jornalismo, "a profissão mais bela e apaixonante do mundo", como chegou a dizer. Hesitava quando lhe perguntavam se tinha sido ele a escolher o jornalismo ou o jornalismo a escolhê-lo a ele e, na última crónica como provedor, sublinhava que não via o "jornalismo como um poder mas como um serviço". Relatou momentos como a cerimónia da independência da Cabo Verde, em 1975, os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, ou as primeiras eleições livres na RDA, em 1990, depois da queda do Muro de Berlim. Em 1985, o Clube Português de Imprensa galardoou-o com o Prémio Reportagem, e, um ano depois, o Prémio de Viagem.

De acordo com um comunicado do Sindicato e informações prestadas pela família à agência Lusa, o velório realiza-se a partir das 15h de quinta-feira na Igreja de S. João de Deus, em Lisboa, e, no dia seguinte, às 11h, no mesmo local, o funeral. O corpo será, depois, às 12h, cremado no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários