Autópsia das cabalas judiciais

A credibilidade das teses de cabala é zero. Não passa de uma cortina de fumo para entorpecer a capacidade crítica das pessoas desatentas e cimentar o apoio dos correligionários políticos mais empedernidos.

Quando algumas pessoas poderosas são incomodadas pela justiça, aparecem as teorias da cabala. Não é só em Portugal. Sarkosy queixou-se do mesmo, Berlusconi disse isso e pior, Lula não tem gritado outra coisa e Trump está farto de amuar com esse argumento. Quem quiser escrever a história das nossas cabalas judiciais tem muito por onde escolher. Do caso “fax de Macau”, nos anos 80, ao recente caso de “Tancos”, passando pelos processos “Casa Pia”, “Universidade Moderna”, “Freeport”, “face oculta” e “operação Marquês”, não faltam teorias da conspiração. A mensagem subliminar repete-se sempre: uma guerra subversiva da justiça contra a política. O objectivo já toda a gente percebeu: desacreditar a justiça e controlar a “rebeldia” daqueles que se atrevem a ameaçar uma impunidade tão conveniente.

Antes de 25 de Abril de 1974, como a justiça não incomodava o poder, não havia cabalas judiciais. Isso viu-se em 1967, com o abafamento do escândalo de pedofilia “Balet Rose”, que poupou os verdadeiros culpados e acabou na condenação de duas pobres prostitutas. Era isso que os teóricos das cabalas queriam, regressar ao tempo da justiça independente mas irrelevante.

Se quisermos ser sérios, facilmente percebemos que só uma análise superficial da realidade, que se demita das mais elementares regras do bom senso é que permite acreditar em tamanho disparate. Proponho um exercício para demonstrar o que acabo de afirmar. Vamos imaginar que sim, que é verdade, que a justiça conspira contra os políticos. Para facilitar, serei eu o conspirador. A ver onde isso nos leva.

A primeira coisa a fazer seria definir o objectivo (por exemplo, prejudicar um partido), escolher o alvo (um político inocente) e estabelecer um plano de acção. A seguir, teria de ter na mão polícias para fabricarem provas, peritos para falsearem relatórios, procuradores do Ministério Público para construírem acusações mitológicas e juízes – das várias instâncias – para prenderem e condenarem. E não me poderia esquecer de arregimentar a imprensa toda para a vigarice, senão era desmascarada quando o processo se tornasse público.

Aqui é preciso uma pausa para lembrar que não seria eu a escolher os cúmplices. Os polícias são designados pela sua cadeia hierárquica, os procuradores têm os inquéritos que os coordenadores lhes atribuem e os juízes são sorteados para os processos por um sistema informático. Portanto, para que a minha conspiração desse certo, ou confiava estupidamente na sorte, ou arranjava maneira de me infiltrar secretamente nas estruturas hierárquicas da polícia judiciária e do Ministério Público e no departamento do Ministério da Justiça que gere o sistema informático dos tribunais.

Depois, na execução do meu plano maquiavélico, teria de reunir com os cúmplices todos em completo segredo, distribuir tarefas, dizer a cada um como actuar e contar com a sua obediência. Supondo que cumpriam todos à risca as minhas ordens e que nenhum jornalista era suficientemente esperto para me apanhar, consumava-se então a cabala.

Está-se mesmo a ver a inédita conjugação cósmica que tinha de acontecer para tamanha conspiração ter êxito e nunca ser desvendada. Pessoas de diversas proveniências, que não se conheciam umas às outras, escolhidas por critérios não domináveis, eram todas da mesma simpatia política, eram todas de confiança para não denunciarem a tramóia, eram todas loucas para correrem o risco de serem despedidas ou presas e eram todas capazes de guardar um segredo destes. E agora, se multiplicarmos um absurdo destes pelas dezenas de teorias de cabala judicial que já ouvimos, a única conclusão a que chegamos é que tinha de ser tudo doido para uma coisa destas ser real.

A credibilidade das teses de cabala é zero. Não passa de uma cortina de fumo para entorpecer a capacidade crítica das pessoas desatentas e cimentar o apoio dos correligionários políticos mais empedernidos. Não é preciso ser cientista da NASA para ver isto. As pessoas razoáveis são capazes de discernir que a justiça pode cometer erros – inevitáveis em qualquer sistema humano – e pode mesmo não ser sempre tão rápida como se exigiria, mas actua com objectividade, com isenção e de acordo com o princípio da legalidade. Quem diz o contrário sem a mínima evidência para nos impingir teorias absurdas é que está mal e quer esconder alguma coisa.

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