Casos de violência contra médicos e enfermeiros estão a aumentar

Nos primeiros seis meses deste ano, a Direcção-Geral de Saúde recebeu mais de quatro centenas de notificações de episódios de violência contra profissionais no local de trabalho. A maior parte são casos de assédio moral, mas em mais de 10% das situações há violência física.

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Paulo Pimenta

Em Maio, um jovem médico de família foi agredido a murro pelo companheiro de uma utente a quem se recusara a renovar uma baixa, numa extensão do centro de saúde da Chamusca. O recém-especialista denunciou o caso nas redes sociais e o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e o próprio ministro da Saúde manifestaram preocupação e disponibilizaram-lhe apoio. A denúncia e mediatização valeram-lhe novas ameaças do agressor. Pediu para ser transferido para uma unidade de saúde no Norte do país, o pedido foi recusado, propuseram-lhe um centro de saúde vizinho, mas recusou com medo de voltar a ser agredido. Continua de atestado médico à espera do resultado do recente concurso para a contratação de especialistas e com a esperança de conseguir um lugar situado bem longe do local onde foi agredido.

“Este caso ilustra a impotência que sentimos neste tipo de situação. Devia ser o Estado a proteger os seus profissionais. Isto ou é incompetência ou desinteresse. É assustador”, reage o bastonário da OM, Miguel Guimarães. “O caso só foi tornado público porque o médico se queixou, mas a maior parte das vezes os profissionais não se queixam”, sublinha.

A violência contra profissionais de saúde no local de trabalho tem cada vez mais visibilidade e expressão, a crer nos dados das notificações que chegam à Direcção-Geral da Saúde (DGS). Ainda que representem apenas uma pequena parte da realidade, os números reportados de episódios de violência (desde assédio moral a insultos e ameaças e até agressões físicas) indicam que o problema se está a agravar ou, pelo menos, que os profissionais se estão a queixar mais. Só nos primeiros seis meses deste ano, as notificações ascenderam a mais de quatro centenas, quando em 2017 o sistema online da DGS registou um total de 678 casos, pelas contas do PÚBLICO.

Depois de em 2007 ter sido criado um observatório para analisar este fenómeno, os casos reportados foram crescendo de ano para ano, com oscilações, mas partir de 2014 dispararam — passaram de 202, no ano anterior, para 531 e, nos últimos anos, foram aumentando sempre.

Desde 2016, porém, estes dados que resultam de denúncias anónimas e voluntárias passaram a estar incluídos em bruto no sistema nacional de notificação de incidentes da DGS, o Notifica. O último relatório anual com a análise detalhada das notificações tem data de 2015. Segundo a chefe da Divisão de Gestão da Qualidade da DGS, estes resultados foram integrados no Notifica “devido à reorganização do sistema nacional de notificação de incidentes, realizada por orientação superior”.

O que os dados permitem perceber é que a maior parte dos casos são de assédio moral (comportamento repetitivo de ofensa ou humilhação conhecido como mobbing), 68% do total nos dois primeiros trimestres deste ano. Depois, aparecem a violência verbal e a física (com uma percentagem de 13% e 12% do total, respectivamente). Ainda que com pouca expressão, há também notificações de episódios de assédio sexual e de ameaças de morte.

As vítimas são maioritariamente enfermeiros (53%), seguidos de médicos (25%) e, depois, de assistentes técnicos e operacionais. Já os agressores são, em mais de metade dos casos, os doentes. Em segundo lugar na lista dos agressores, surgem curiosamente os profissionais da própria instituição onde a vítima trabalha e, logo a seguir, os familiares e acompanhantes dos doentes.

Botões de emergência

As ordens e os sindicatos dos médicos e dos enfermeiros têm estado atentas a este fenómeno. Os enfermeiros são, naturalmente, os mais expostos. “Somos os primeiros a dar a cara e o corpo pelo Serviço Nacional de Saúde”, sintetiza João Paulo Carvalho, presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros, que recentemente abordou este problema num encontro com enfermeiros directores de hospitais e com vogais dos conselhos de enfermagem dos agrupamentos de centros de saúde.

“A subnotificação é muito grande, até porque os profissionais têm muitas vezes medo de represálias”, observa. Convencido de que uma das causas principais deste fenómeno é a falta de condições de trabalho dos serviços — “as pessoas cansam-se de estar horas à espera” —, João Paulo Carvalho admite que “a gestão de emoções nem sempre é fácil”.

Já há hospitais, conta, que têm protocolos de actuação para situações deste tipo que incluem os chamados “botões de emergência ou de pânico,” localizados debaixo dos balcões ou secretárias ligados à segurança ou à polícia e que são accionados quando se percebe que a situação pode evoluir para violência. Mas as instalações têm que ser repensadas e o número de profissionais deve ser reforçado, propõe. 

Para estes serviços é preciso ter profissionais treinados, defende José Azevedo, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, que lembra que há tácticas e estratégias para lidar com doentes e com familiares agastados.

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Desde há anos preocupado com o crescendo de agressões, Carlos Cortes, presidente da Secção Regional do Centro da OM, criou um gabinete de apoio que, além de receber e encaminhar casos de burnout para hospitais com os quais tem protocolos — “os médicos não querem ser tratados nas instituições onde trabalham”, explica — também recebe e tenta dar sequência a queixas de violência.

“Quando os casos chegam à Ordem, os profissionais já perceberam que as instituições não os protegem. E há um problema suplementar: quando voltam ao local de trabalho, têm que se cruzar com os agressores”, critica. Em Espanha, segundo afirma, os agressores ficam impedidos, durante um período determinado, de frequentar o serviço onde o episódio de violência aconteceu. “Em Portugal não. A legislação não protege os profissionais de saúde”, lamenta.

Carlos Cortes não esquece o caso de um colega que, por um motivo fútil, foi agredido, porque disse a um homem que a filha que esperava ter era, afinal, um menino. “Ficou zangado, o segurança não conseguiu controlá-lo e ele teve que meter baixa.”. Quanto aos números da DGS, desvaloriza-os. “Não reflectem o que está a acontecer. Não há uma semana em que os colegas não me reportem casos desse género”, assegura.

Cultura de “impunidade”

Os serviços de urgência dos hospitais são habitualmente aqueles onde os profissionais estão mais expostos a agressões. Para Nídia Zózimo, dirigente da Federação Nacional dos Médicos que, aos 64 anos, continua a trabalhar na urgência do hospital de Santa Maria (Lisboa) e ela própria já foi alvo de agressões por diversas vezes, a maior parte dos casos não são notificados porque os profissionais “acham que não vale a pena”.

“Quando o caso é reportado, os agressores são identificados, mas depois é preciso avançar com uma participação. Dá uma trabalheira e muitas vezes os doentes ou os familiares alegam que estavam perturbados. É toda uma cultura de impunidade”, lamenta a médica.

Nos últimos tempos, a situação tem ficado mais complicada, porque as condições de trabalho agravaram-se com a saída ininterrupta dos especialistas mais velhos. “Isto está a ficar insustentável, as pessoas queixam-se devido aos atrasos”, frisa. Ainda na última segunda-feira, exemplifica, os doentes com pulseira amarela (casos urgentes) tinham que aguardar entre cinco a seis horas quando o portal do SNS indicava que a espera era de duas horas.

O problema da violência contra profissionais de saúde no local de trabalho nunca chegou a ser abordado de forma integrada, admite André Biscaia, médico que conduziu, em conjunto com outros investigadores, aquele que foi o primeiro grande trabalho de investigação sobre este fenómeno em Portugal, em 2002.

A nossa percepção é a de que a pequena ou grande violência é quase diária e a maior parte dos estudos indicam que quase 50% dos profissionais foram já sujeitos a algum tipo de violência, adianta o médico.

Nos cuidados de saúde primários, o último estudo disponível, levado a cabo pela Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar (USF-AN) em 2016/2017, indica que 85,5% das USF mencionaram pelo menos um episódio de violência nos últimos 12 meses, sendo que a maior parte eram ameaças e agressões verbais e 14%, agressões físicas.

Um estudo antigo realizado na Suécia revelou que os sectores onde há mais casos de violência são os da saúde e da segurança social. Há circunstâncias que facilitam a violência nestes sectores, explica André Biscaia: “São serviços de porta aberta e representam a face visível do sistema, lidam com a dor e o sofrimento das pessoas, com situações-limite”.

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