Covid-19 pode vir a ser erradicada, admite Francisco George

“Ferramentas e meios” que a ciência tem hoje à sua disposição tornam possível o controlo e eliminação do vírus, a começar pela vacina. Apesar de o mundo não se ter preparado devidamente para uma pandemia antes desta chegar, o antigo director-geral da Saúde lembrou casos como a varíola, considerada erradicada, ou a poliomielite, que segue o mesmo caminho.

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Rui Gaudencio

O especialista em saúde pública Francisco George admite que o vírus que provoca a doença covid-19 venha a ser erradicado, porque há hoje meios para tal, mas recusa projectar uma data.

Em entrevista à Agência Lusa, reconhece que o mundo não prestou atenção ao surgimento de outras doenças emergentes nos últimos 40 anos e que, por isso na preparação do combate a pandemias como esta da covid-19. O médico e antigo director-geral da Saúde considera que ainda é cedo para se perceber o que se vai passar com o novo coronavírus mas admite: “Há ferramentas e meios que a ciência hoje disponibiliza que podem vir a controlar e eliminar o vírus”.

“É possível que isso venha a acontecer. Ninguém pode dizer que nunca nos libertaremos deste vírus. Mas também ninguém pode dizer que nos vamos libertar do vírus dentro de pouco tempo”, afirma.

A luta contra o SARS-CoV-2, que provoca a doença covid-19, é um assunto que está, diz, em análise permanente, a nível mundial. E acrescenta: “Nós, aqui em Portugal, também deveríamos ter mais pensamento sobre estas questões, e equipas que devem seguir estes problemas, para antever na medida do possível aquilo que possa acontecer”. Porque, garante, é preciso antecipar a reemergência ou a emergência de novos problemas.

Na entrevista, Francisco George não se cansa de enfatizar a importância do estudo, da análise científica, do trabalho de prevenção. Porque a natureza de um vírus como o actual assim o exige.

Cauteloso, o especialista não quer avançar se no Inverno vai haver, como no ano passado, um aumento exponencial de casos de covid-19. E lembra, sem ser crítico, mas compreendendo, declarações de Graça Freitas, actual directora-geral da Saúde, no início da pandemia, a minimizar a importância do novo coronavírus.

“Aquilo que se diz hoje pode perder actualidade, é verdade naquele dia, mas pode não ser verdade uma semana depois. Este vírus apresenta uma capacidade de mutação que nós já conhecemos pela formação das variantes que estão a circular. Isso é verdade, mas ainda é cedo para antever o final da pandemia. Nós ainda não podermos dizer acabou”, diz em entrevista na sede da Cruz Vermelha Portuguesa, instituição a que preside, no Palácio da Rocha do Conde D’Óbidos, em Lisboa.

As variantes, explica, resultam de um conjunto de mutações do vírus durante a fase de replicação nas células, e estão relacionadas com a magnitude da propagação epidémica, pelo que é mais passível de acontecerem em países grandes, como a China ou a Índia.

Um conjunto de pequenas alterações formam uma variante e essa variante adquire características que podem ser melhores ou piores do que a estirpe inicial, diz, para explicar o quanto é difícil ter certezas nesta matéria. Mas certo é que a história recente da medicina mostrou que os vírus podem ser eliminados e controlados. Aconteceu, lembra, com a varíola, considerada erradicada, e deve acontecer com a poliomielite.

E há as vacinas, sobre as quais Francisco George fala diversas vezes, admitindo também que entretanto surgirão os medicamentos. Segundo o antigo director-geral da Saúde, os Estados, sobretudo no Ocidente, não fazem investigação científica no sentido de produção de vacinas, o que compete às empresas farmacêuticas. O que agora aconteceu, refere, foi que se percebeu que, tendo o vírus sido sequenciado, era mais rápido procurar uma vacina do que um antiviral.

“E foi isso que aconteceu em todos os centros da indústria farmacêutica, de diferentes continentes, que produziram uma vacina quase simultâneo, se bem que com características distintas”, diz. E acrescenta: “No que respeita aos medicamentos a linha de trabalho foi estudar os antivirais que tinham sido ensaiados na epidemia de ébola de 2014”.

Nessa linha de investigação foram seleccionados alguns medicamentos que agora estão em fase avançada de estudo e que podem “estar acessíveis em breve”.

Vacinar crianças? Sim, caso seja seguro e eficaz

Francisco George fala com entusiasmo da actual pandemia pelas medidas tomadas para a combater, mas sobretudo da vacina: “É extraordinária. Ao contrário de outras, é uma vacina inteligente” e “é absolutamente seguro ser vacinado”.

A vacinação das crianças está a ser a discutida e analisada, tendo a Pfizer já anunciado que a sua vacina contra a covid-19 é eficaz em crianças dos cinco aos 11 anos e que vai requerer autorização nos Estados Unidos para este grupo em breve. O ex-director-geral da Saúde Francisco George não vê entraves na vacinação deste grupo etário, desde que as vacinas “tenham uma base de comprovação científica, da sua segurança e do resultado positivo”.

“Se as coortes estudadas por epidemiologistas perceberem que as crianças são fontes de transmissão do vírus, da infecção, e que precisam de ser protegidas, e se tivermos a certeza da segurança da vacina, não vejo porque não”, diz.

Em Portugal, as crianças são vacinadas desde a nascença até à entrada no ensino secundário, observa o médico. Então, questiona: “Se há reforço para as outras vacinas, e se há vacinação de crianças com menos de cinco anos para outras doenças, porque é que não há de haver também para estas?”.

Quanto à terceira dose da vacina, defende que a sua necessidade é ditada pelo nível de anticorpos produzidos pelas vacinas anteriores e que a decisão terá de ser tomada com base científica.

“Não são as opiniões, sobretudo de comentadores, que devem ser ouvidas em termos dos comentários que formulam, que são livres, que são justos, que são legítimos, mas não tem base científica”, declara.

Portanto, sustenta, “não há aqui nenhuma opinião a não ser aquela que é baseada na demonstração de que o número de doses anteriores [da vacina] tenha protegido o cidadão, a sua família, a comunidade, através da medição em laboratório dos anticorpos que circulam no soro”.

Mundo falhou na preparação de pandemias

Francisco George considera que o mundo falhou na preparação de pandemias como a covid-19, ainda que alertado por outras doenças emergentes nas últimas décadas. O médico acha estranho que não se tivesse admitido que podiam surgir novas doenças e não houvesse uma preparação para elas, à luz de outros coronavírus neste século (SARS logo no início do século e depois, em 2012, o MERS). Mas vai mais atrás, até 1980, lembrando o aparecimento da Sida.

“O que é estranho neste processo é que muitos governos, muitos governantes, muitos médicos, muitos cidadãos, não tenham compreendido o fenómeno de 1980 com o aparecimento de um novo vírus, de uma nova doença que até então não tinha existido”, diz.

Um ano antes, em 1979, ninguém admitia que novas doenças pudessem surgir, as faculdades não ensinavam aos seus estudantes cenários desta natureza, de novas epidemias. As lições, afirma, eram baseadas sobretudo no controlo dos problemas, acabar com doenças como se tinha feito com a varíola.

“Era o tempo do controle do paludismo. Era o tempo do controlo do sarampo, que também foi eliminado, do controlo e eliminação da poliomielite. Eram esses os temas de estudo nas academias, e nunca o cenário de poder surgir uma questão nova”.

Mas surgiu. E nessa altura, em 1980, as autoridades académicas e os governos foram alertados para a necessidade de reforçar as unidades de saúde pública. Francisco George é peremptório: em Portugal, apesar dos “sucessivos alertas”, até internacionais, as unidades de saúde pública “nunca foram motivo de atenção”.

“Muitas vezes os programas eleitorais falavam do reforço da saúde pública, mas depois na prática não havia reforço”, diz, considerando que um dia é preciso olhar para trás “com duas lupas”, uma política e outra científica, e ver o que aconteceu desde 1980. É necessário ver, considera, as promessas e os porquês do não cumprimento dessas promessas em termos de saúde pública, como é preciso um olhar de base científica para perceber os erros que terão sido cometidos.

“Um deles podemos já adiantar, a saúde pública e as suas infra-estruturas, as suas estruturas, foram surpreendidas com, digamos, a força deste furacão” que foi a covid-19. Por isso, defende, é preciso dar atenção aos equipamentos de saúde pública, ao seu pessoal, e reforçar a defesa do país até em termos de segurança nacional, através do reforço das unidades de saúde pública.

“Sempre foi uma luta, que considero que a nível pessoal terei feito, mas provavelmente não terei feito o melhor, porque se tivesse feito melhor o resultado teria sido outro”, reconhece.

Em Portugal, resume, faltou atenção à saúde pública, e ainda que tivessem existido anúncios “não houve desenvolvimento daquilo que tinha sido anunciado para reformar a saúde pública a nível nacional”.

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