Covid-19: perspectivas para o Outono

Iremos assistir a uma segunda onda da pandemia? Dispomos ainda de cerca de dois meses para nos prepararmos. Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, faz o ponto da situação e reflecte sobre estratégias a adoptar para os próximos meses.

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ANDRÉ CARRILHO/CM AMADORA

Entrar no Outono sem perspectiva de vacina ou de tratamento eficaz para a covid-19 é presentemente a maior preocupação das autoridades de saúde em Portugal e em todo o hemisfério Norte. Iremos assistir a um forte ressurgimento da epidemia, a dita segunda onda? É a pergunta a que ninguém consegue responder com segurança, porque ainda persistem muitas interrogações sobre a nossa interacção com o vírus. Contudo, é inegável que aprendemos bastante nos últimos seis meses e o que aprendemos ajuda-nos a identificar os factores que vão ser decisivos para o pós-Verão. Dispomos ainda de cerca de dois meses para nos prepararmos. Vale a pena fazer o ponto da situação e reflectir sobre o que será mais importante para as futuras formas de actuação.

Três grupos de factores irão determinar se haverá ressurgimento da doença no Outono-Inverno. O primeiro grupo tem a ver com o nosso comportamento e com as formas de transmissão do vírus. O segundo, com o grau de imunidade adquirido pela população, particularmente a protecção adquirida pelas pessoas que já foram infectadas e a sua possível reinfecção. O terceiro, com a efectividade da intervenção das autoridades de saúde em contexto de ressurgimento da epidemia. As duas primeiras vertentes serão aqui abordadas recorrendo aos conhecimentos científicos adquiridos nos últimos meses. A terceira vertente será abordada com uma perspectiva mais pessoal, inteiramente discutível e aberta a escrutínio.

O comportamento humano e as formas de transmissão do vírus

Para compreender como evitar o contágio, é imprescindível compreender primeiro como o vírus se transmite. Sabe-se desde há muito que os vírus causadores de infecções respiratórias se transmitem através de gotículas emitidas pela tosse e pelo espirro. Menos conhecido é o facto de que, quando falamos, também emitimos milhares de gotículas, algumas das quais muito pequenas, nomeadamente com menos de 5 micrómetros (a milésima parte do milímetro), evidentemente invisíveis a olho nu.

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Enfermeiras em Wuhan, China China Daily/Reuters

Na ausência de ventilação, estas gotículas microscópicas podem permanecer no ar muitos minutos ou mesmo horas e deslocar-se ao sabor do fluxo de ar dominante. Numa experiência controlada, as gotículas mais pequenas tombaram lentamente a uma velocidade média inferior a 20 cm por minuto. O volume da voz influencia a quantidade de gotículas emitidas e a distância a que estas se deslocam: vozes mais altas projectam mais e empurram as gotículas para mais longe. Já foram filmadas com o auxílio de laser, estimando-se que uma pessoa emite mais de mil gotículas por segundo quando fala normalmente. Em ambiente fechado, com a presença de várias pessoas a falar, forma-se uma nuvem que, com o tempo, cresce gradualmente e desce muito lentamente, nuvem esta que pode facilmente ser inalada pelos presentes. Sabe-se, desde há vários anos, que outros vírus respiratórios, como a gripe, o sarampo, e os outros coronavírus podem ser transportados por estas gotículas, originando aquilo a que a literatura científica designa, em inglês, por airborne transmission ou simplesmente transmissão por aerossol.

O novo coronavírus também está presente nas gotículas emitidas pelas pessoas infectadas, incluindo as que são assintomáticas. Um estudo recente detectou directamente a emissão de RNA (material genético) do vírus na expiração de cinco (em 30) doentes com covid-19, estimando-se que emitiam mil a cem mil cópias do RNA do vírus por minuto, respirando normalmente. São numerosos os eventos em que um grande número de pessoas foi infectada pela covid-19 em espaço fechado, em um curto espaço de tempo, eventos estes que dificilmente podem ser explicados, salvo pela transmissão por aerossol: coros, reuniões, lares, festas, clubes nocturnos, navios de cruzeiro e outros, restaurantes, autocarros, dormitórios partilhados, fábricas...

Os exemplos continuam a acumular-se na literatura científica. Alguns foram estudados com recurso a imagens de CCTV e, em um caso, a transmissão foi recriada usando simulações com gases. Todos estes eventos de supertransmissão têm em comum ocorrerem em espaços mal ventilados, partilhados por muitas pessoas durante muitos minutos, as quais falam e se deslocam, contribuindo para aumentar a nuvem suspensa de partículas de aerossol e partilhando a sua inalação. Nestas circunstâncias, muitas pessoas podem ser infectadas por um único infectado, o qual pode ser assintomático. O assunto tem também sido alvo de exercícios de modelação matemática. Estes sugerem que a velocidade a que a epidemia avançou dificilmente seria possível sem estes eventos, por oposição a formas de contágio em que um indivíduo infectado transmite o vírus a apenas uma ou duas pessoas de cada vez.

Recordemos as três principais formas de contágio da covid-19. Primeiro, o contacto físico directo, tipificado pela mão que toca em um objecto infectado e a seguir vai à boca ou aos olhos. Segundo, as gotículas grandes que emitimos pela tosse ou pela fala e que caem a um ou dois metros de distância, embora possam ser inaladas por um vizinho próximo ou possam cair em uma mesa, cadeira, ou outro objecto em que outra pessoa possa tocar.

Finalmente, a transmissão por aerossol já mencionada. Os novos hábitos que, felizmente, a maioria dos portugueses assimilou – lavagem repetida das mãos, desinfecção de superfícies, uso de máscaras (reduz grandemente a emissão de gotículas), distanciamento físico – minimizam grandemente as duas primeiras formas de transmissão: o contacto físico e as gotículas. Por esta razão, será pouco provável um ressurgimento da covid-19 à mesma velocidade a que assistimos em Março. Temos agora um maior controlo sobre as duas primeiras formas de transmissão. É indispensável mantermos estes hábitos que, possivelmente, vão também contribuir para diminuir a circulação de outros vírus respiratórios causadores de constipações, além da própria gripe.

A transmissão por aerossol é mais problemática. A partir do Outono, as pessoas aumentam gradualmente o tempo passado em recintos fechados, mal ventilados, criando condições para esta via de transmissão. Uma máscara é útil porque bloqueia a maioria das gotículas emanadas por quem a usa. Porém, se não se tratar de um respirador profissional, não evita a inalação de gotículas muito pequenas. O nosso sucesso em evitar uma segunda vaga irá depender, em parte, da nossa capacidade para minimizar o contágio por aerossol. É importante identificar antecipadamente os ambientes em que pode ocorrer, evitá-los quando possível, e minimizar os danos quando não é possível, por exemplo através da ventilação natural, do uso de aparelhos que renovam o ar, e do uso cuidadoso de máscaras em recinto fechado. A ventilação regular do espaço faz toda a diferença.

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Nova Iorque Mike Segar/REUTERS

Imunidade da população

O recente Inquérito Serológico, realizado à escala nacional pelo Instituto Ricardo Jorge, sugere que o número de casos diagnosticados de infecção em Portugal representa menos de 12% do total de infecções ocorridas no país. A maioria das infecções terá sido assintomática ou com sintomas suaves. Apesar disso, apenas 3% a 5% dos portugueses terão sido infectados (tendo em atenção que alguns infectados em Março já não tinham anticorpos detectáveis aquando do Inquérito), o que está muito longe dos valores em torno de 60% habitualmente apontados para se alcançar imunidade de grupo.

Ou seja, a imunidade populacional adquirida até agora não será suficiente para evitar uma segunda vaga. Este resultado era esperado, sendo agora importante saber se as pessoas que foram infectadas mas permaneceram assintomáticas ou tiveram doença suave poderão ou não ser reinfectadas pelo vírus. A resposta ainda não é conhecida. Contudo, o que aprendemos sobre a resposta do nosso sistema imunológico a este vírus indicia ser improvável que, em caso de reinfecção, as pessoas venham a desenvolver doença grave ou mesmo moderada. Os dois parágrafos seguintes fundamentam as razões desta afirmação.

Está bem estabelecido que os doentes com covid-19 desenvolvem anticorpos neutralizantes para o vírus SARS-Cov-2. Vários trabalhos, contudo, têm mostrado que os anticorpos diminuem grandemente a sua concentração no sangue no decorrer de aproximadamente dois a três meses após recuperação da doença. O decaimento dos anticorpos é mais rápido em pessoas que não tiveram sintomas (mas tiveram resultado positivo em teste) e nas que tiveram sintomas suaves. Este decaimento tem sido por vezes um pouco dramatizado; contudo, é normal o decaimento de anticorpos algum tempo após uma infecção viral, não é novidade. A pergunta importante que se impõe é: se a pessoa for reinfectada, o seu sistema imunitário apresenta uma resposta secundária de anticorpos que evita contrair novamente a doença? Esta resposta secundária é comum em outras viroses, mas ainda se desconhece se ocorre com o SARS-Cov-2 e, principalmente, desconhece-se até que ponto depende da gravidade do quadro clínico na primeira infecção. Experiências efectuadas em macacos infectados e reinfectados sugerem que sim, ou seja, espera-se que ocorra imunidade pelo menos nas pessoas que tiveram covid-19 com sintomas moderados ou graves. Para os assintomáticos, ainda há muitas incertezas e essa é uma preocupação a ter em conta.

A resposta do sistema imunitário aos coronavírus é complexa. Todos os coronavírus que infectam humanos (há mais seis, além do SARS-Cov-2) originam uma resposta protectora baseada nos anticorpos. Os coronavírus que causam doença grave (SARS e MERS), paralelamente, desencadeiam uma resposta baseada nas chamadas células T, conhecida por imunidade celular. Com o tempo, os anticorpos decaem mais depressa do que as células T. Os anticorpos no sangue de pessoas que foram infectadas com o coronavírus SARS em 2003, por exemplo, caíram para níveis muito baixos ao fim de dois a três anos, contudo, as células T foram detectadas nestas pessoas passados 17 anos depois da infecção com SARS. Sabemos agora que os doentes com covid-19, além de anticorpos, também desenvolvem imunidade celular e, tudo indica, é provável que esta protecção seja duradoura.

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A nova vida de um cabeleireiro em Lisboa rAFAEL Marchante/Reuters

Mais uma vez, os doentes que têm doença moderada ou grave exibem, além dos anticorpos, também imunidade celular mais forte e eficaz. Suspeita-se, aliás, de que a severidade da doença seja consequência de uma resposta tardia e demasiado exacerbada das células T que migram para o trato respiratório inferior. Caso se confirme, podemos dizer que, se, por um lado, é arriscado ter uma forte resposta de células T porque esta pode agravar a doença, por outro lado, depois de recuperar, é provável que um ex-doente de covid-19 grave fique protegido de forma mais eficaz e duradoura do que um infectado assintomático. Mas há uma boa notícia: estudos recentes sugerem que os assintomáticos infectados com o novo coronavírus também desenvolvem imunidade celular e, de momento, esta constatação alimenta a esperança de que os assintomáticos, no mínimo, não desenvolvam doença grave caso sejam reinfectados. O tempo o dirá. Ainda temos muito para aprender sobre este vírus.

Saúde pública e estratégia para o Outono-Inverno

Para preparar o Outono-Inverno, será conveniente distinguir entre tácticas e estratégia. As tácticas são em geral consensuais, têm sido referidas também por outros epidemiologistas e pelas autoridades de saúde. Por exemplo, é consensual que deveríamos reduzir muito mais a actual incidência de casos antes da chegada do Outono: uma média de 300 casos por dia é um valor muito alto, não afasta o risco de descontrolo, dada a capacidade para propagação exponencial deste vírus na população. É lugar-comum dizer-se que os recursos das equipas de saúde pública devem ser reforçados, em especial nas zonas urbanas densamente povoadas. Tem havido melhorias, provavelmente ainda aquém do desejável, mas não vou insistir neste aspecto. É consensual também a necessidade de medidas de segurança restritas nas residências de idosos, devido ao elevado risco de hospitalização destes doentes. A tudo isto adiciona-se a necessidade de evitar ajuntamentos em recintos fechados, mal ventilados, e a já mencionada necessidade de manter regras rígidas de higiene, distanciamento e uso de máscaras. É fundamental a contribuição e o envolvimento de todos os cidadãos para estas tácticas, se quisermos evitar uma segunda vaga.

No que respeita a estratégia, partilho a opinião já manifestada por outros epidemiologistas, segundo os quais Portugal deveria agilizar as intervenções de saúde pública relativas a covid-19 passando a transferir decisões para o nível local. Se cada município tiver um conjunto de directrizes simples e claras que devem ser aplicadas face à situação epidemiológica vivida no município, estas directrizes podem ser aplicadas de imediato pelas autoridades de saúde locais, sem aguardar decisões emanadas a partir de Lisboa. Há duas grandes vantagens: primeira, a rapidez de actuação; segunda, o sentimento de responsabilidade que as populações locais devem adquirir face à situação epidemiológica vivida na sua comunidade e as respectivas consequências. As directrizes mencionadas não podem ser exaustivas, mas devem incluir uma lista sobre como actuar relativamente aos assuntos que já sabemos que requerem a tomada de decisões: lares, escolas, transportes públicos, eventos públicos, cafés e associações recreativas, cercas sanitárias.

É pouco provável que se voltem a justificar medidas de confinamento geral, emanadas centralmente, abrangendo grandes áreas geográficas e com grandes danos sociais e económicos. Seria muito mau sinal regressarmos aí. Passamos agora a intervenções localizadas, nas quais é usada uma gradação de medidas ajustadas às necessidades e especificidades de cada comunidade. Qual o papel das autoridades de saúde centrais e regionais nesta estratégia? Dois papéis afiguram-se como muito importantes para que tudo funcione bem.

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Jardim-de-infância em Banguecoque, Tailândia Athit Perawongmetha/Reuters

O primeiro é tecnológico. Portugal deveria ter um mapa de risco de covid-19, actualizado diariamente, de forma automática, que auxiliasse cada município a conhecer em tempo real a sua situação epidemiológica e a dos municípios vizinhos. Uma solução talvez possível é a ligação do actual Sinave (sistema usado para notificação de doenças infecciosas pelos clínicos em tempo real), ou um Sinave revisto, a uma interface “amigável” e disponível às autoridades locais, a qual apresente diariamente o risco de doença, com uma resolução geográfica pelo menos ao nível concelhio. O segundo papel para as autoridades centrais e regionais consiste em auxiliar as autoridades locais a ajustar as directrizes gerais acima mencionadas a cada situação concreta. Eventualmente, em situações epidemiológicas de maior gravidade, a complementação das equipas de saúde pública locais com o envio de equipas móveis que auxiliem no rastreamento de contactos, nas aplicações de testes e no isolamento dos casos confirmados.

A covid-19 gerou uma crise sanitária colectiva. Ao contrário de outras ameaças colectivas, como as climáticas, esta tem a particularidade de nos fazer sentir muito rapidamente e com grande proximidade as consequências de não sermos todos os dias participantes disciplinados no seu combate. A solução final para esta crise vai basear-se na ciência e tomará a forma de uma terapêutica ou de uma vacina. Até essa solução chegar, sabemos o que é necessário fazer para mitigar a crise, estamos mais bem preparados e mais informados, é indispensável usarmos o conhecimento que adquirimos.

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