Debate clínico, jurídico e ético

Desde a entrada em vigor da legislação sobre gestação de substituição, a 1 de Agosto deste ano, há um pedido de celebração de contrato. Trata-se do caso em que uma mãe, de 49 anos, se propôs ser gestante do neto, uma vez que a filha não tem útero. Depois de uma deliberação favorável do  CNPMA, o processo aguarda o parecer da Ordem dos Médicos.

“O caminho faz-se caminhando”, diz Eurico Reis, presidente do CNPMA, lembrando que este é um debate sobre o qual as opiniões se dividem e as principais preocupações ou dúvidas residem nos planos clínico, jurídico e, sobretudo, ético.

Helena Pereira de Melo, professora de Direito da Saúde e Bioética na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, defende que “não existem leis nem boas nem más” e que tudo depende da “forma como forem aplicadas”. Contudo, levanta uma questão: “Será que vai aumentar a pressão social sobre as mulheres?” Faz uma viagem no tempo para pensar o futuro: se no passado “a infertilidade era vista como um castigo divino”, se durante tanto tempo quem não tivesse filhos era discriminada pela sociedade, esta lei não irá prolongar esse peso sobre as mulheres? “As pessoas já têm pouco que deixar (após morrerem). Agora, querem deixar os genes”, explica.

A questão está em perceber se quem recorre à gestação de substituição — comercial, como é permitido nalguns países; em situações estritas, de acordo com a lei nacional — não o estará a fazer por “motivos meramente narcísicos”, ou melhor, que estejam a pensar mais nelas próprias do que nos filhos. “É o ter em vez do ser”, diz ao P2. Helena Pereira de Melo teme que a criança possa estar a ser vista “como um produto” e não como um ser humano. Sobre as futuras mães e gestantes, lembra que todo o processo “pode ser muito desgastante”, do ponto de vista físico e emocional, até porque pode durar muito mais tempo do que uma gravidez natural.

O dominicano Frei Bento Domingues, colunista do PÚBLICO, considera que, mesmo antes de ser uma questão religiosa, “é sobretudo uma questão de ética”. “Nesse campo de investigação e experimentação está a desenvolver-se uma cultura perigosa: tudo o que é tecnicamente possível é moralmente permitido”, diz ao P2. O que lhe causa maior perplexidade nestes avanços científicos e jurídicos é observar o que diz ser “a instrumentalização ou manipulação de uns no sentido de satisfazer as vaidades e exibicionismos de outros”. E isso, conclui, é “degradante para todos os intervenientes”. E defende que uma lei, “para ser justa, deve cumprir exigências rigorosas para não incentivar delírios e caprichos, com negócios sujos, ora clandestinos, ora com cobertura mediática”. 

Eurico Reis, presidente do CNPMA, está consciente de que a lei “não está isenta de riscos e defeitos”. Apesar disso, defende que vem resolver problemas legítimos a pessoas que, “por azar”, não podem ter filhos. Sobre a questão da legislação ser aberta a estrangeiros não residentes, questiona: “Porquê guardá-la para os portugueses e não permitir acesso a outras pessoas com as mesmas dificuldades? Foi para estas situações que foi criada”, justifica. Não é o que pensa André Pereira Dias, director do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. “Nestas áreas de bioética [a lei] deveria mais prudente”.

Na sua opinião, em “matéria sensível como esta”, pode existir “muitos embaraços” com as autoridades diplomáticas: “Quando a criança nascer, vai haver problemas de registo civil.” E, mesmo alegando o direito europeu da “livre circulação de pessoas, bens e serviços”, também diz que “essas [liberdades europeias] podem ser limitadas” por questões de ordem ou saúde públicas. “[A lei] vai ser sujeita a uma pressão natural de muita gente para recorrer a Portugal. Penso que o Direito europeu pode aceitar essas restrições e não fazer daqui um livre mercado nestas áreas bioéticas”, afirma. No seu entender, os legisladores portugueses deviam seguir o exemplo do que “acontece com a eutanásia na Holanda e na Bélgica”, que só admite esta prática “a cidadãos residentes e permanentes”.  

Para além das questões jurídicas, chama a atenção para o risco de que o que designa por “turismo reprodutivo” poder vir a contribuir para uma maior clivagem social: “De um lado temos os alfa que podem tudo; de outro, os beta, que estão cá para os servir.” 

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