Famílias à beira de um ataque de nervos

Não há dúvidas de que o programa Supernanny é indefensável. Mas os problemas das famílias retratadas não desaparecem só por desligarmos as câmaras de televisão.

Eu gostava de ter gostado de Supernanny. Infelizmente, o formato do programa não o permite. Ter uma psicóloga a fingir que é Mary Poppins – Supernanny a chegar no seu Mini colorido para pôr ordem nas crianças de uma família desesperada – ainda se tolera, mas é impossível aceitar a transformação descarada de um drama real num produto de entretenimento com recurso às técnicas mais banais de telenovela. Há pequenos detalhes tristemente exemplares: colocar em pós-produção o som de uma estalada violenta em cima da imagem de uma ligeira palmada, para aumentar o efeito dramático da cena, como eu vi a SIC fazer no primeiro episódio, mostra bem o respeito que o programa tem pela verdade e pela “vertente pedagógica” que tanto diz promover.

Mas a razão porque eu gostava de ter gostado de Supernanny merece ser explicada, e é esta: aquela família precisa realmente de ajuda e de conselhos, e não os tem. Este ponto tem estado demasiado ausente do debate público. Se Mary Poppins é uma personagem de ficção, se a Supernanny é paga pela SIC para dar audiências, e se o Estado português não liga um caracol a essa coisa antiquada chamada “família” – a não ser, pelos vistos, quando as famílias expõem as suas crianças na televisão, porque aí, ai meu Deus, coitadinhas, que ficam marcadas para a vida –, então aquilo que sobra é uma família solitária, perdida, sem saber o que fazer a uma criança descontrolada.

É neste ponto que eu me afasto da opinião generalizada. Parece-me difícil assistir ao primeiro episódio de Supernanny e concluir que o maior problema do “Furacão Margarida” é os colegas de sete anos gozarem com ela na escola porque a viram na televisão bater na mãe. Lamento: o seu maior problema é mesmo não ter em casa um adulto capaz de impor regras mínimas de comportamento. Sendo que este problema não é – repito: não é – competência da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da área onde reside a família.

Uma das coisas assustadoras neste processo – e num texto que Eduardo Sá publicou neste jornal, “Mau trato com patrocínio” – é a sugestão de que a CPCJ deveria entrar em campo porque aquela criança tinha sido maltratada pela mãe e pela avó. Há um detalhe muito grave que a SIC necessita de esclarecer – o pagamento de 1000 euros à família pelo retrato do caso, segundo noticiou o Correio da Manhã –, mas classificar uma criança que está a ser mal educada, e que foi exposta na televisão, como uma criança em risco é ir longe demais. Nós temos simultaneamente Estado a menos – porque as famílias não têm os apoios de que necessitam – e Estado a mais, se a classificação de “criança em risco” de repente se começar a estender a casos como este.

Aquilo que a lei define como “legitimidade da intervenção” do Estado na protecção da criança é muito abstracto, como não poderia deixar de ser, e exige uma larguíssima dose de bom-senso. Nada do que vimos na televisão revela que aquela criança não seja amada ou bem tratada. Pelo contrário. O dia em que confundirmos a má educação com os maus tratos é o dia em que o Estado passa a sentar-se à nossa mesa e a dormir na nossa cama. Onde o Estado precisa de intervir é a montante disso – é proporcionando àquela família ajuda profissional séria no caso de ela estar a sentir-se incapaz de educar um filho problemático. Não há dúvidas de que o programa Supernanny é indefensável. Mas os problemas das famílias retratadas não desaparecem só por desligarmos as câmaras de televisão.

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