Grupo quer direito de voto para todos os imigrantes dos PALOP

Dos PALOP, apenas os cabo-verdianos podem votar, e só nas autárquicas. Grupo recém-criado de migrantes e afrodescendentes defende alargamento de direito de voto.

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Antonieta Gomes tem dupla nacionalidade Miguel Manso
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Yussef é guineense e não pode votar Miguel Manso
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Joana Saly é brasileira e vota em todas as eleições Miguel Manso

Têm de respeitar as instituições políticas mas não o direito a escolher quem os representa. Contribuem para a Segurança Social, mas não podem votar. A Constituição da República Portuguesa, no artigo 15.º, diz que os estrangeiros que vivem em Portugal “gozam dos direitos" e "deveres do cidadão português”. Mas restringe o voto a imigrantes de algumas nacionalidades — e a algumas eleições.

Cidadãos da Guiné-Bissau como Yussef (sem apelido, é o nome pelo qual é conhecido no seu grupo consciência negra) não podem votar nunca. Desde os seis anos em Portugal, e apesar do seu activismo, Yussef tem um campo de acção política limitado. Defende que não deveria ser português para ter acesso a esse direito e “negar” o pedido de “nacionalidade portuguesa” representa “um acto de luta”: “Um imigrante paga os impostos mas perante as propostas de partidos políticos sobre para onde vão as contribuições não tem uma palavra a dizer. Essa democracia não funciona”, afirma. 

Apenas aos imigrantes da União Europeia, Cabo Verde, Argentina, Chile, Colômbia, Islândia, Noruega, Nova Zelândia, Peru, Uruguai e Venezuela é concedido o direito de voto nas autárquicas por causa dos acordos de reciprocidade entre os países. Os brasileiros são os únicos que podem votar nas eleições legislativas e presidenciais e os cabo-verdianos os únicos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) que podem votar e concorrer às autárquicas.

Os constrangimentos da lei levaram justamente à criação, há uns meses, do grupo com cerca de 15 membros Diálogo Inter Candidatos Migrantes e Afrodescendentes, do qual fazem parte a antiga deputada do PS Celeste Correia, cabo-verdiana e portuguesa, o recém-candidato à Câmara Municipal da Amadora Mário de Carvalho, também cabo-verdiano e português, entre outros membros de “todas as forças políticas”.

Este grupo que se reuniu pela primeira vez em Novembro, em Lisboa, quer que a lei permita o direito de participação e voto a todos os cidadãos dos PALOP e em todas as eleições. Há quem defenda a cidadania lusófona, como Celeste Correia. A limitação imposta pela lei tem como consequência os imigrantes sentirem que “não são cidadãos de pleno direito”, analisa a socialista que foi deputada na Assembleia da República durante 18 anos.

Ainda à procura de uma linha, estão a tomar consciência da necessidade de que é preciso organizarem-se como cidadãos “dentro das estruturas”, afirma Mário de Carvalho, porque o percurso dentro dos partidos é "lento e doloroso". Para o também presidente da Associação Caboverdeana é necessário as “segundas e terceiras gerações estarem por dentro para mudar”. Enquanto imigrante e afrodescendente português diz: “Estamos integrados em termos associativos, desportivos, económicos, mas politicamente estamos esvaziados de poder. Não temos representatividade, não estamos nos centros da decisão. Não temos força”, lamenta.

Um em cada três cabo-verdianos está recenseado

Os eleitores cabo-verdianos não são assim tão poucos: dos cerca de 36 mil a viver em Portugal, um em cada três com mais de 18 anos está recenseado, número alto comparativamente com o Brasil, a maior comunidade imigrante do país com 80 mil pessoas, onde essa proporção é de um em 15 (dados de 2016 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras cruzados com os da Comissão Nacional de Eleições). Os imigrantes representam 3,8% da população total residente.  

“Há várias áreas fechadas aos imigrantes. A política é o aspecto máximo dessa invisibilidade”, afirma Paulo Mendes, cabo-verdiano com nacionalidade portuguesa que vive nos Açores e dirigiu a Plataforma das Estruturas Representativas das Comunidades de Imigrantes em Portugal (PERCIP), activa entre 2007 e 2013. Um dos objectivos era estender o direito de voto dos imigrantes. Reivindicavam o recenseamento automático para quem obtivesse a autorização de residência.

Se não tivesse nacionalidade portuguesa, jamais a também guineense Antonieta Rosa Gomes, 58 anos, poderia ser, como é, deputada pelo PS na Assembleia Municipal de Sintra e membro da assembleia da Freguesia da União das Freguesias de Massamá e Monte Abraão. Na Guiné-Bissau, foi ministra de duas pastas (da Justiça e dos Negócios Estrangeiros), candidatou-se à Presidência da República e às legislativas. Ser deputada é uma forma de “exercer plenamente os direitos”. Mas “se tivesse a começar do zero na política talvez nem sequer me tivesse candidatado”, porque a trajectória nos partidos não é nada fácil, diz.

Mas “nada é mais interessante do que ter a sua voz como cidadão na sociedade em que vive”, acredita. “É o direito de cidadania a ser exercido. As decisões políticas não afectam só os nacionais, afectam todos os que vivem no território”, analisa a também investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL. Por outro lado, a integração de imigrantes como actores políticos “viria a enriquecer o pluralismo político, que é o que interessa nas democracias”. E incentivaria a participação de imigrantes.

Tema não é prioritário

Diz o candidato pelo PSD nas últimas autárquicas a Ponta Delgada, Paulo Mendes, que os partidos políticos não estão “abertos” ao ingresso de imigrantes. E embora todos estejam de acordo sobre esse défice, a verdade é que “acaba por não ser prioritário”. “Olhamos para o Parlamento e vemos que não é um reflexo da composição da sociedade. Há um filtro invisível que não permite as pessoas lá chegarem.”

Noutra parte da equação entra a fatia da população portuguesa de origem imigrante. “Na Amadora tivemos dois ou três candidatos [de dupla nacionalidade cabo-verdiana e portuguesa] com resultados marginais, o que nos leva a outra questão: as pessoas não vão votar naquela pessoa só porque tem uma cor igual. É bem mais complexo, não pode ser um trabalho de forma avulsa e feito apenas no momento eleitoral, os próprios conselhos consultivos nos concelhos têm que valorizar a participação”, defende.

Fundador do Movimento de Intervenção e Cidadania (MICA) pela Amadora, Francisco Pereira, também com dupla nacionalidade, foi um desses candidatos em 2008. Olha para a política como “actividade cívica” por isso em Portugal, para onde se mudou aos 18 anos, decidiu concorrer à autarquia da Amadora, um dos concelhos mais multiculturais do país, mas que até hoje não tem diversidade na sua assembleia municipal, nota - num concelho onde mais de 7% da população é africana. “Formalmente, a lei diz que podemos participar mas não há oportunidade de colocar as pessoas nas listas”.

A viver em Portugal desde 1968, Celeste Correia refere que o grupo de reflexão do qual agora faz parte “tem essa componente de chamar a atenção” e alertar “as novas gerações para não ficarem à espera” que as convoquem: “Elas têm que entrar para os partidos”, defende. Embora consciente de que há um longo caminho a percorrer, está confiante nessa “nova geração com vontade de reivindicar os seus deveres e direitos”. Tem “esperança que comece a ser normal ver deputados negros na assembleia e nas juntas de freguesia, não ser apenas alguém lá posto para a fotografia”.  

Presidente da República só português “de origem”

O debate ao longo dos anos não tem tido consequências práticas. António Vitorino, actual candidato a director da Organização Internacional para as Migrações, defendeu em 2011 a alteração da Constituição de modo a se alargar a votação e candidatura a eleições locais a outros estrangeiros que não apenas os da União Europeia e os dos países com quem Portugal tem acordos de reciprocidade – posição que mantém, disse ao PÚBLICO, mas que por causa da sua candidatura não quis desenvolver. Em 2005, Rui Marques, então alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, também defendeu um alargamento, mas desta vez também não quis comentar.

No relatório europeu Index de Políticas de Integração de Migrantes (MIPEX 2011) Portugal aparecia numa boa posição mas no capítulo da concessão de direitos políticos a imigrantes tinha menos pontuação. A questão tem vários contornos, além do direito de voto. Por exemplo, alguém que se naturalizou português, teve uma carreira política ascendente, foi um primeiro-ministro popular nunca poderia ser Presidente da República porque esse cargo está reservado aos portugueses "de origem". Em contraste, um neto de portugueses que nunca tenha vivido em Portugal goza de plenos direitos políticos, pode votar em todas as eleições e candidatar-se a Presidente.

Segundo a Constituição e os acordos de reciprocidade espelhados na lei eleitoral, à presidência de autarquias é permitido candidatarem-se cidadãos da União Europeia, brasileiros e cabo-verdianos. Os imigrantes não podem ainda ser presidentes da Assembleia da República, primeiro-ministro, presidentes dos tribunais supremos cumprir serviço nas Forças Armadas e ter carreira diplomática. Também não podem exercer funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico.

Para a jurista Antonieta Gomes, ao restringir aos portugueses originários a possibilidade de se candidatar à Presidência da República o legislador aceita a naturalização mas com restrição de direitos, distinguindo uns portugueses de outros. Ora isso “contraria o princípio da igualdade”.

As regras não são de facto iguais para todos. Porque é que os cidadãos do Uruguai (que em 2016 tinham apenas 11 recenseados) podem votar nas autárquicas mas os angolanos não? É por causa dos acordos de reciprocidade mas a pergunta não fica totalmente respondida. Apesar das tentativas junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros não foi possível obter esclarecimentos.

A brasileira Joana Saly, casada com um português, militante do não oficializado Partido Em Luta, onde existem vários estrangeiros e portugueses com dupla nacionalidade, é das poucas imigrantes que podem votar nas legislativas. Mas mesmo assim defende que a lei deveria ser mudada para conceder direitos iguais. Seria uma medida formal para “convidar as pessoas a participar, mas não é claro que elas queiram, os partidos também têm que ter respostas às nossas necessidades”, conclui.

Por contraste, os cidadãos do Bangladesh não podem votar em nenhuma eleição. Presidente do Centro Islâmico do Bangladesh e da Associação Amizade Bangladesh-Portugal, Rana Uddin tem a nacionalidade portuguesa mas “80% da comunidade do Bangladesh” não e por isso não vota, estima. “Contribuem para todas as partes da economia portuguesa, pagam impostos, mas na altura de votar não têm direito a dar opinião como membros da sociedade, nem a escolher…”

Por isso defende que deveria existir uma lei que permitisse votar a quem vive em Portugal há um "x" número de anos. Na função de conselheiro da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, pelo PS, percebeu a importância de representar a comunidade, reclamar direitos e participar activamente na vida cívica do país. Encara a sua missão como a de alguém que está “a abrir caminho para a comunidade entrar na política e participar nas eleições”. Também ele considera que os partidos estão pouco abertos à entrada de imigrantes: “Quem não tem poder de voto não conta.”

Cidadania, o reduto onde o Estado controla

Desde que em 2004 Isabel Estrada Carvalhais, directora do programa de Ciência Política na Universidade do Minho, começou a investigar estas questões que a realidade não se alterou muito, afirma. “A dimensão política da cidadania continua a ser um reduto onde o Estado gosta de ter algum controlo, não só em Portugal”, analisa. “Há uma tendência para proteger os direitos políticos”.

Autora de artigos como Condição pós-nacional da cidadania política: pensar a integração de residentes não-nacionais em Portugal refere que a questão acaba por não entrar nas prioridades dos partidos. “Se a expressão económica das comunidades fosse importante, se calhar era vista como premente”, afirma.

Quanto ao facto de o cargo de Presidente da República estar reservado a portugueses refere que tem a ver com a prevalência do “paradigma da cidadania nacional”: “A cidadania não é igual à nacionalidade. É um recurso escasso e é visto como importante. Têm-se criado critérios que dificultam o seu acesso e a nacionalidade tem sido a porta de entrada. É a forma que o Estado tem de controlar”, conclui.

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