Não estaremos a exagerar com a vacinação das crianças saudáveis dos cinco aos 11 anos?

Se, por regra, não devemos duvidar das opções da DGS, também não devemos duvidar que o Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tenha como interesse único o bem-estar das crianças.

Entre os pediatras que não defendem a vacinação imediata de todas as crianças dos cinco aos 11 anos não existe “negacionismo”, mas sim prudência e solicitação de análise tranquila dos factos conhecidos e das questões legítimas que não estão respondidas.

Um dos principais argumentos da vacinação das crianças e adolescentes tinha sido a sua necessidade para travar a pandemia. Tudo já indicava que não teria impacto e a 5.ª vaga surge com 85% da população com “vacinação completa”.

Agora e bem, a análise é centrada na relação benefício/risco para a criança. Olhemos então para os dados disponíveis.

A incidência está a aumentar em todos os grupos etários e particularmente nas crianças dos cinco aos 11 anos de idade. Mas não se deve estranhar que a incidência em crianças que estão numa sala fechada várias horas por dia sem máscara seja maior do que a que se verifica em crianças em que o uso de máscara é obrigatório na escola.

Os 400 casos por dia que temos neste grupo correspondem apenas a 14% do total. E como a quase totalidade destas crianças tem poucos ou nenhuns sintomas, o impacto nos serviços de saúde é residual.

Os valores apresentados para cálculo de benefício/risco pela Comissão Técnica de Vacinação consideraram uma população entre cinco e 11 anos de 640.000, dos quais até à data 68.000 infetados, diagnosticados por deteção do vírus. No entanto, a taxa de seropositividade identificada no 2.º inquérito serológico nacional permite estimar que cerca de 89.000 crianças 5-11 anos já se tinham infetado até março (o dobro dos identificados por deteção direta). Com um raciocínio semelhante e mesmo reduzindo o fator de correção para 1,5, temos mais 37.500 infetados desde abril, somando um total de 126.500. O impacto da vacina será assim só em 513.500 crianças, porque estas 126.500 já estão bem imunizadas pela infeção natural.

Dos internamentos pediátricos em que é detetado SARS-CoV-2 apenas 50% são motivados por doença associada a este vírus. Não sei a que valor se referem os 220 reportados. A percentagem de crianças infetadas que são internadas variará assim entre 0,085% e 0,17%.

A análise de impacto da DGS foi a quatro meses pós-vacinação, provavelmente porque se sabe dos dados do adulto que a proteção para infeção decai rapidamente depois disso. Ora, se em 22 meses se infetaram cerca de 20% das crianças de 5-11 anos, é lícito estimar que em quatro meses se infetem 3,2% das 513.000, ou seja, 16.416 crianças. Se aplicarmos as taxas de internamento referidas, mesmo assumindo uma taxa de proteção de 100%, o número de internamentos prevenidos em quatro meses seria de 14 a 28.

Consideremos agora os dados fornecidos pela Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos referente a todas as UCI nacionais. Em 22 meses de pandemia houve um caso de criança previamente saudável entre cinco e 11 anos internada por infeção direta do vírus. Se a média de casos por mês for idêntica à dos últimos 22 meses, a vacinação das 640.000 crianças, mesmo que esta prevenisse 100% dos casos graves, iria prevenir 0,18 internamentos de crianças saudáveis em UCI.

Até agora nada sabemos sobre prevenção da síndrome inflamatória multissistémica pela vacina e, uma vez que é mediada imunologicamente, os dados não são extrapoláveis. Não se espera prevenir nenhuma morte, porque virtualmente não ocorrem.

Na análise acima foi considerada a impossível taxa de 100% de vacinação e de proteção. Estes números tão baixos serão ainda significativamente inferiores na realidade.

O contexto dos ensaios clínicos foi com variantes que se espera rapidamente deixarem de ser predominantes. Nada sabemos do que nos espera, nomeadamente com a Ómicron. Mas já sabemos que novas vacinas mais adaptadas às variantes atuais estão anunciadas para a primavera de 2022. Quantas doses de vacina serão propostas a 640.000 crianças para prevenir um internamento transitório em UCI de uma criança que era saudável?

Há bastantes melhores formas de aplicar os recursos financeiros em saúde, nomeadamente em pediatria. Era bom ter também uma análise custo/benefício, considerando custos de vacina, de logística de administração, de efeitos adversos da vacina ligeiros e graves.

Aqui considero questionável o uso que foi referido de dados epidemiológicos americanos sobre miopericardites. As realidades são diferentes nas características populacionais, nas comorbilidades e na prevalência de outras infeções que causam miocardite. Temos os nossos dados e é sobre eles que devemos trabalhar. É muito importante a análise de dados em conjunto com serviços de cardiologia pediátrica – nomeadamente comparar meses com predomínio quase total de SARS-CoV-2 (janeiro e fevereiro 2020) com meses pós-vacinação (setembro e outubro) e com os casos de setembro e outubro em 2019. E que a DGS inclua na análise todos os casos de morte súbita, que podem ser a única manifestação de miocardite de qualquer etiologia.

O número de crianças envolvidas nos ensaios é demasiado pequeno para aferir a sua segurança, pelo que os alertas emitidos para os adolescentes e jovens adultos se mantêm. Nenhuma vacina teria aprovação, mesmo condicionada, com este ensaio, senão para infeções com grave repercussão clínica. Ora, este não é manifestamente o caso da infeção por SARS-CoV-2 em pediatria. Primemos pois, como sempre se tinha feito em Portugal, pela segurança.

O mais sensato parece assim vacinar por ora apenas grupos de risco, em que as relações benefício esperado/risco potencial e custo/benefício são mais favoráveis. Há tempo para identificar estas crianças, porque não estamos a viver pressão clínica da infeção em pediatria. E, quando se vacinar, que se use um intervalo superior a quatro meses que garante eficácia mais duradoura, e se considere a ausência de benefício demonstrado em vacinar crianças previamente infetadas.

Por outro lado, a decisão acertada do Governo de aplicar regras de testagem semelhantes aos vacinados e não vacinados tira o argumento de se vacinar crianças para poderem ir à escola – o que já de si era muito enviesado. O que impede as crianças de ir à escola são os decretos governamentais e as normas da DGS.

Já alguém ouviu falar de fechar creches por casos de infeção por VSR, o vírus responsável pela maioria das bronquiolites e que, só no Hospital de Santa Maria, já motivou mais de 120 internamentos dos quais mais de 20 em cuidados intensivos? E de obrigar a rastrear todos os contactos, ficar em casa com os pais e só voltar à creche com dois testes negativos ao 5.º e ao 10.º dia, que obrigam a agendamento e deslocação a um local de colheita?

Continuamos a assistir a muitos exageros e pouca tranquilidade na gestão da pandemia. O que leva à exaustão de recursos da saúde pública, implica gastos excessivos para o país (financeiros, laborais, sociais e de saúde por diminuir a disponibilidade para a prática de medicina preventiva noutras áreas e pela repercussão de confinamentos sucessivos) e não influencia a evolução da pandemia. Esta tem tido as sucessivas vagas esperadas, diminuindo a repercussão clínica.

Contudo, se as novas variantes tiverem um perfil de transmissibilidade e de concordância antigénica com as estirpes atuais muito diferente, podemos assistir à expansão da pandemia em toda a população. Mas, nesse caso, pouco podemos esperar das vacinas atuais. Caso contrário, qualquer recomendação feita agora, como, por exemplo, o do consumo de uma laranja por dia, poderá vir a ser interpretada como tendo impacto significativo na redução de incidência que esperamos observar na 2.ª ou 3.ª semana de janeiro nestas idades. Por dois motivos simples: o aumento gradual da população que está bem imunizada por ter já sido previamente infetada e pelas férias escolares do Natal.

Espero que não se pressionem os pais através de discriminação entre vacinados e não vacinados e a criação de situações de exigência de certificado digital para estas idades.

Uma vez que nunca houve acesso a nenhum dos relatórios que estão por base das decisões da DGS, esperemos que a conferência de imprensa anunciada para dia 10 seja esclarecedora.

Não nos devemos precipitar. Devemos exigir sobretudo ciência e evidência, apesar de o seu percurso não poder ter a velocidade que o medo exagerado pressiona.

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