“O que são 100 euros, com duas crianças, para o mês todo?”

Trabalha numa das casas mais movimentadas de Lisboa, os Pastéis de Belém. É uma das 336 mil trabalhadoras do turismo mas férias só faz quando vai “para a terra”. Aos 38 anos, Carla Sofia lamenta: “Nunca levei o meu pequenino ao Jardim Zoológico."

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“Se formos ao supermercado e à farmácia, fica lá tudo”, resume Carla Sofia Miguel Manso

Esta é a segunda de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?

Carla Sofia entra nos Pastéis de Belém com grande à-vontade. Vê-se logo que conhece bem os cantos de uma das mais famosas casas de Lisboa. Sorridente, mostra as sucessivas salas do edifício centenário, a cozinha onde diariamente se fazem milhares de bolos para os turistas que esperam à porta e que depois os levam às dúzias. Aqui e ali vai cumprimentando os colegas. Há dias em que vê pessoas a bater à porta mesmo antes da abertura ao público, às 8h, tal é o sucesso dos pastéis que ali são feitos há 180 anos. 

Chega a uma das salas e diz com orgulho: “Limpo isto todos os dias. Às 6h30 já aqui estou, gosto sempre de chegar mais cedo." E aponta: “Ali temos a esplanada mas hoje está fechada."

Se o turismo é a galinha dos ovos de ouro da economia portuguesa, os Pastéis de Belém são um dos seus grandes ex-líbris. Aqui fazem-se pelo menos 20 mil pastéis por dia (últimos dados de 2017). Não há guia turístico que não os refira.

Carla Sofia, 38 anos, tem 18 como empregada de limpeza desta casa. O seu turno é, normalmente, das 7h às 16h, mas no dia em que o PÚBLICO a entrevistou tinha começado às 5h. “Quando não temos pessoal, temos que fazer outro horário”, comenta, sem lamento. Fala em “nós”, usa o plural quando se refere à empresa. Embora trabalhe em turismo, as únicas férias que faz são “ir para a terra”. 

Ganha, de base, um salário de 620 euros brutos – e não 580 euros como o PÚBLICO escreveu. É uma das 336 mil trabalhadoras do turismo (que inclui o sector do alojamento, restauração e hotelaria). A média do salário base dentro da sua área, no segundo trimestre de 2018, era de 648 euros, bem menos do que os 887 euros do resto dos trabalhadores, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), que excluem subsídios e prémios. Já depois de publicado o artigo na edição em papel a 9 de Dezembro, a Antiga Confeitaria de Belém fez saber que a este salário que paga à trabalhadora são acrescidas outras parcelas como subsídio de alimentação, prémio de assiduidade, diuturnidades, prémio de produtividade, feriados e horas extra (este último item num dos recibos de ordenado chega aos 350 euros brutos). Com os impostos e Segurança Social, e descontada a penhora judicial que impende sobre o seu vencimento, por causa das dívidas que contraiu, mais o pagamento de empréstimo que a empresa lhe concedeu, este ano Carla Sofia ganhou uma média mensal de 862 euros. 

Diz o INE que a pobreza atinge 9,7% dos trabalhadores. Está neste grupo quem tem "um rendimento anual por adulto equivalente" inferior a 468 euros por mês, sendo que o "rendimento por adulto equivalente" é obtido dividindo o rendimento das famílias por cada elemento que as integram, tendo em conta a sua composição. Carla pode não se enquadrar no que as estatísticas definem tecnicamente como um trabalhador pobre, mas não deixa de viver uma situação precária.

Na altura da entrevista com 17 anos, o filho mais velho de Carla está a tirar um curso de restaurante-bar no Colégio Pina Manique (Casa Pia); o mais novo tem sete anos e estuda no 1.º ano do ensino básico. Apoio tem da Associação Ser Ajuda, em Lisboa; do pai do filho mais velho recebe 150 euros, mas “vai ser cortado quando ele fizer 18 anos”; do pai do mais novo nunca recebeu nada.

Vive numa cave perto do mercado de Algés, com dois quartos — Carla Sofia dorme num quarto e os dois rapazes dormem noutro. “A casa é pequenininha… para a casa que eu tinha…não tem nada a ver”, lamenta, de lágrimas nos olhos. 

Está a comparar com uma casa onde viveu no Cacém, com o ex-marido, pai do filho mais velho. Só que, nessa altura, ela era vítima de violência doméstica. “Era tudo um mar de rosas até virar um mar de espinhos”, recorda. “Um dia a minha colega perguntou-me porque não me despia à frente delas. Eu não queria porque estava marcada por ele, ia para a casa-de-banho. Houve uma vez em que ele deu-me uma sova, fui parar ao hospital. Um polícia disse-me: ‘Se você voltar para casa agora, na próxima vez pode ir para o seu enterro e não vê mais os seus filhos’.” Ela então tomou coragem (foi há 14 anos) e saiu. “Andei de quarto em quarto. Foi assistência social, foi tribunais…”.

Ainda chegou a ir a tribunal mas, sem dinheiro para “bons advogados” ao contrário dele: “Os que eu arranjava da Segurança Social faltavam." Acabou por desistir. 

A renda que nunca foi paga

Pensou muitas vezes que devia “abandonar isto tudo e ir para a terra”. Conta: “Gostava de me arranjar, de me pintar, mas fui-me desleixando…”.

Nascida em Arouca, perto de Aveiro, veio para Lisboa aos 16 anos trabalhar para cuidar de uma idosa; fez vários serviços como doméstica, trabalhou em cafés até chegar aos Pastéis de Belém. “A minha vida melhorou um bocadinho quando vim para Lisboa. Melhorou no aspecto de não passar fome, poder vestir-me, poder comprar a minha roupa, fazer a minha vidinha.”

Depois da separação, foi morar para a Ajuda, em Lisboa. Mais tarde iniciou outra relação e ficou grávida do segundo filho. A casa era “velha, precisava de obras”. “O Tribunal de Família e Menores foi lá e não deu hipótese, não deu ajuda. Disse: ‘ou você arranja uma casa ou fica sem os meninos’. Ficar sem os meus filhos não!” 

A relação com o tribunal e a Segurança Social não foi fácil. “Metiam sempre defeitos, era isto e aquilo. A casa precisava de obras mas eu não tinha maneira.”

Um dia percebeu que tinha o ordenado penhorado — o marido não pagava as rendas para as quais ela lhe entregava o dinheiro. Tem ideia de que devem ter sido mais de 10 mil euros de dívida, mas não tem sequer a certeza, a patroa é que gere a penhora e por isso todos os meses fica sem parte do ordenado (pelo menos 166 euros, no recibo que vimos). “Antigamente estava nos pastéis e depois ia trabalhar na segurança privada. Chegava ao fim do mês e dava-lhe [ao pai do segundo filho] o dinheiro para fazer as contas. Um dia cheguei a casa com a penhora na mão e ele já não estava. Fiquei com o bebé no colo e bastantes dívidas.”

Explicou à patroa o que se passou, pediu ajuda para encontrar uma casa. “Disseram que emprestavam dinheiro para as rendas adiantadas e depois descontavam no ordenado. Já paguei essa parte, graças a Deus! Agora vou ter outra dívida, para arranjar a minha boca”, diz, contente. Aponta para os dentes que lhe faltam. Quer arranjar um segundo emprego na segurança privada. “Vou às entrevistas e já sei que não vão chamar por causa da boca.” Os patrões têm ajudado. “Também sabem que só se eu não puder…. Nunca faltei, nunca chego atrasada, estou aqui há 18 anos. As únicas baixas que meti foi por causa dos meus filhos.”

Fome já não passa

Uma vez por mês vai à Associação Ser Ajuda buscar alimentos e roupas “para os meninos”: arroz, massa, cereais, etc. No resto do mês, leva pão do trabalho, à noite come uma sopa. “Há meses que é bué apertado. O pequenino pede alguma coisa, brinquedos ou uma goma, e nem pensar.” Tem de pagar o passe da Carris para ela e para o mais velho, “são quase 70 euros os dois”. Depois o filho mais velho “tem um eczema de pele, é um dinheirão em farmácia”. Há meses em que gasta 50 ou 60 euros em cremes. 

Mas organiza-se assim: primeiro paga a renda, a água, luz e gás; o resto é para a alimentação. Fazendo as contas: renda são 350 euros, todos os meses precisa de duas bilhas de gás, 50 euros; a água e a electricidade variam mas rondam 80 euros; há ainda as telecomunicações e a televisão, o passe dela e do filho, numa soma que chega aos 600 euros. Tem ainda uma dívida a pagar ao banco. A verdade é que fica com 100 euros, às vezes 200, para o mês todo. “Quando há dinheiro faço compras maiores. Compro coisas melhores: peixe, os nuggets de que eles gostam. Outras vezes não dá para comprar aqueles iogurtes que ele quer e ficamos por ali”, lamenta. 

Carla Sofia chora. Custa-lhe. “Eu passei muita fome”, lembra. “Éramos sete e a minha mãe era solteira. E ela não tinha, prontos, não dava para comprar nada para nós. Chega ao Natal e não dá para comprar nada.” 

Há uma outra forma que o INE utiliza para medir a população mais vulnerável, mesmo aquela que não encaixa no conceito de pobreza monetária (a que vive com o tal rendimento inferior a 468 euros). É o conceito de "população em risco de pobreza ou exclusão social". São perto de 2,2 milhões de pessoas em Portugal (21,6% da população) que estão numa destas situações: têm rendimento inferior ao limiar de pobreza, ou vivem num agregado onde os adultos trabalham muito poucas horas por mês, ou estão em privação material (esta medida pela incapacidade de suportar, por exemplo, uma semana de férias para a família, uma despesa inesperada, uma refeição de carne ou peixe pelo menos de dois em dois dias).

Considera-se Carla pobre? “O que são 100 euros com duas crianças, para o mês todo? As crianças precisam de alimentar-se, calçar-se, precisam de tudo. E eu não tenho. Se formos ao supermercado e à farmácia fica lá tudo. Não posso dizer aos meus filhos: ‘hoje vamos comer fora, hoje vamos ao cinema, vamos ao Jardim Zoológico. Nunca levei o meu pequenino ao Jardim Zoológico.” Com o filho a fazer 18 anos, preocupa-a não ter dinheiro para fazer uma coisa especial, como desejava. Nem que fosse levá-lo a jantar fora. O filho já disse: “‘Mãe, não te preocupes’", conta. “Mas é uma dor de cabeça”, desabafa. “Hei-de arranjar, nem que tenha que pedir."

Ainda ambiciona que “eles estudem” e façam o que ela não pôde fazer. Uma coisa melhorou na escala social, considera: pelo menos os filhos não passam fome como ela passou.

Todos os dias, antes de os turistas entrarem e começarem a levar os pastéis, ela e o filho mais novo tomam o pequeno-almoço. "Sempre é uma ajuda."

Notícia actualizada às 17h59 de dia 10 de Dezembro 

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