“Se contasse ia ser outra vez ‘a violada’, ‘a maluca’, ‘a mentirosa’, ‘a puta’”

Histórias de pessoas violadas em Portugal vão ser compiladas num livro, escrito pela jornalista Helena Ferro Gouveia. Ela própria vítima de uma tentativa de violação, propõe-se quebrar preconceitos e legendar o silêncio das vítimas.

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Helena Ferro Gouveia reuniu 32 relatos de violações numa semana Direitos Reservados

Num post escrito de rajada, a jornalista Helena Ferro Gouveia decidiu relatar no Facebook a tentativa de violação de que foi vítima em 2010, num país africano “que quase ninguém sabe localizar no mapa”. Numa semana, foi inundada com 32 relatos de mulheres e homens que tinham passado pelo mesmo. Decidiu transformá-los num livro. Para legendar o silêncio de décadas, tornando-o compreensível para quem nunca viveu um trauma semelhante. E que, mesmo assim, se sente no direito de atirar pedras às vítimas.

“É muito preconceituosa a forma como a sociedade vê as vítimas e isso reflecte-se na jurisprudência. Apesar do ruído, há muito pouca informação fundamentada. Ainda há dias vi uma médica dizer na televisão que os homens têm picos de testosterona quando vêem um decote e uma saia. Isso é passar um atestado de menoridade aos próprios homens. Creio que há aqui um enorme trabalho educativo a fazer”, declarou ao PÚBLICO, para sintetizar: “A ideia é desmontar preconceitos, contar histórias e fazer o enquadramento, nomeadamente para ajudar quem nos julga a criar empatia com as vítimas."

Para alterar quadros mentais, poder-se-ia recorrer à ficção, como quando o escritor peruano Mario Vargas Llosa descreve os sentimentos de Urania, a personagem feminina do livro “A Festa do Chibo, violada aos 14 anos: "Tenho quarenta e nove anos e ainda estou a tremer, uma vez mais. Estou a tremer há trinta e cinco anos, desde esse momento."

Mas Helena, ex-correspondente do PÚBLICO na Alemanha, e que nos últimos anos trabalhou em países de África, Ásia e América Latina, como docente de jornalismo com trabalho em storytelling  para os direitos humanos, nomeadamente com vítimas de trauma, ao serviço da agência alemã de desenvolvimento Deutsche Welle Akademie, acabou por ver repetidas nos relatos verídicos que lhe chegaram as explicações para o tal silêncio de décadas.

No seu caso, por que é que não denunciou? “Na altura, não falei porque estava fora do país e ia colocar-me numa situação ainda mais complicada, porque era estrangeira, porque tinha aberto a porta do quarto à noite, aquela filosofia do ‘puseste-te a jeito’. Pesei os riscos e optei por não falar. Não que não sentisse a raiva a mexer por dentro, mas não falei."

Para a jornalista, que na manhã seguinte à tentativa de violação se maquilhou, “ajeitou os estilhaços internos” e foi “trabalhar como num dia normal”, é "fundamental respeitar o silêncio das vítimas”. Mas os relatos que recebeu fizeram-na considerar que, à boleia do #MeeToo, se criou um clima que despertou nas pessoas esta necessidade de falar. “As feridas precisam do seu tempo e o tempo está agora maduro para que se contem estas histórias."

Além da sua história, a da tentativa de violação perpetrada pelo motorista responsável por a manter segura no país em que estavam — o que a leva a, ainda hoje, colocar uma cunha de madeira na porta de todos os quartos de hotel onde pernoita —, Helena Ferro Gouveia encontrou nos relatos das outras vítimas frases como estas: "Sentia-me a pessoa mais estúpida do mundo, e não queria que ninguém soubesse o quanto tinha sido imbecil. Se fizesse de conta que estava tudo bem, ia ficar tudo bem". E ainda: “Se contasse ia ser outra vez ‘a violada’, a ‘maluca’, a ‘mentirosa’, a ‘puta’ (…). Se ninguém souber, é mais fácil fingir que não aconteceu e viver normalmente. Mas aconteceu. E não se vive normalmente. E não passa. E passaram 25 anos."

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