A voz da geração pós-Cairo: Portugal, um oásis seco

Em Portugal temos acesso e consciência sobre direitos sexuais e reprodutivos, e já conseguimos aprovar muitas leis no que diz respeito aos direitos humanos. Mas ainda há grandes desafios a vencer.

Somos os/as Millennials e as/os que vieram depois, a geração que cresceu ou nasceu depois da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo (ICPD), em 1994. Somos a geração das lutas com interseccionalidade e somos a geração Ela Decide! A nossa voz é o nosso poder – vamos puxar uma cadeira e ocupar um lugar à mesa, porque temos algo a dizer.

Já em novembro decorre, no Quénia, a Cimeira de Nairobi que tem como um dos principais objetivos discutir os passos para o futuro da saúde sexual e reprodutiva. A representação dos/as jovens Portugueses/as conta com o apoio do movimento SheDecides, e a voz que levamos foi co-construída em diálogo, troca de ideias e sentimentos. Entre cadeiras virtuais construídas por formulários do Google e cadeiras reais do jardim do Pipa Velha, no Porto, tivemos uma conversa com mais de 30 jovens com ideias para partilhar. Lançamos-lhes o desafio de reflectir sobre o mundo de amanhã: como podia ser melhor? Como vemos os direitos sexuais e reprodutivos em Portugal? O que nos trouxe a nossa experiência e o que observamos à nossa volta? Espremendo bem as narrativas, hoje trago-vos o nosso sumo.

Concluímos que em Portugal temos acesso e consciência sobre direitos sexuais e reprodutivos, e que já conseguimos aprovar muitas leis no que diz respeito aos direitos humanos. No entanto, sentimos que os maiores desafios se prendem com a falta de atualização e eficiência dessas mesmas leis e dos serviços públicos que, na prática, continuam a perpetuar a violência com base no género, incluindo o femicídio, e a manter desatualizados o planeamento familiar e o currículo de educação sexual. Segue-se um resumo das discussões organizadas por temáticas:

1. Planeamento familiar heteronormativo e biológico

O planeamento familiar em Portugal existe, encontra-se disponível e é eficaz para os/as jovens, especialmente no que diz respeito à educação para o uso de métodos contracetivos, embora seja puramente direcionado para heterossexuais e com o foco na prevenção/planeamento da gravidez. Verifica-se a inexistência da educação para a experiência sexual relacionada com o âmbito psicossocial, as emoções e o prazer, e continua a não existir um espaço disponível e preparado para debater expressões/orientações sexuais não normativas.

2. Falta de educação sexual compreensiva nas escolas

A educação sexual nas escolas, embora obrigatória, é, na grande maioria das vezes, abafada nos currículos, e quando, de facto existe, é maioritariamente focada na biologia, na prevenção de infeções sexualmente transmissíveis e baseada na heteronormatividade. Neste âmbito, surge também a necessidade de evoluir para uma educação sexual compreensiva, com espaço para a abordagem das emoções, da experiência sexual relacional e da diversidade de expressão na sexualidade, incluindo pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, queer, intersexo e outras expressões e identidades (LGBTQI+).

3. Violência de género e femicídio

Vinte e quatro mulheres já morreram este ano vítimas de violência doméstica em Portugal. Embora exista legislação adequada neste âmbito, verifica-se que os serviços públicos não estão preparados para agir de forma eficiente, existindo em muitos casos uma resposta medíocre por parte da justiça – que perpetua a culpabilização das vítimas – e que também não possui suficientes mecanismos de educação pública para a prevenção, falhando, também por isso, ao nível escolar.

4. Direito à Existência

Pessoas LGBTQI+ enfrentam uma saúde mental débil, que nalguns casos os conduz à morte, em Portugal. Várias leis são aprovadas para assegurar os seus direitos, mas a falta de consciência e educação social leva a um contexto não preparado e muitas vezes cruel para a sua existência. A relação com as famílias, o acesso aos serviços públicos, o contexto escolar e o acesso e contexto profissional são os principais âmbitos onde os/as jovens reportam experiências de discriminação.

5. Direito ao Prazer

O sexo ainda é tabu. Não há espaço para a educação sexual, para partilha de experiências, para se falar sobre prazer – e, com isso, muitas oportunidades de prevenção do assédio, da violência sexual e de experiências sexuais negativas são perdidas. A sexualidade positiva tem impacto no bem-estar das pessoas, na promoção de escolhas positivas em torno da sua sexualidade, autodeterminação, relacionamentos românticos e vida.

Independentemente da área em foco, sentimos que, embora Portugal esteja avançado em termos de legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG), violência com base no género e direitos LGBTQI+, estas leis muitas vezes não saem do papel para a prática no dia-a-dia das pessoas. Por exemplo: no que diz respeito à IVG, nem sempre o SNS garante a ausência de julgamentos morais; a violência com base no género continua a refletir números assustadores; as pessoas LGBTQI+ não têm o mesmo acesso que os seus pares heterossexuais no que diz respeito ao casamento e à adoção pelas barreiras burocráticas que ainda persistem.

Perante este panorama, temos várias soluções para discutir se nos derem uma cadeira à mesa: a preparação de campanhas para acompanhar as leis e a garantia da preparação dos serviços para as mesmas; a educação nas escolas para temáticas sociais por profissionais da área; a formação dos/as prestadores/as de serviço público; e o uso de programas de televisão como ferramentas de educação de pares com o poder de modelar crenças sociais. As estratégias têm assim, por base, a prevenção e educação para a não violência e não discriminação de todas as pessoas, independentemente do sexo, género, orientação ou identidade sexual.

Esta geração tem voz e tem algo a dizer – Portugal é um oásis de papel e, quando o vento sopra, está seco.

Em 1994, no Cairo, 179 governos adotaram um programa de ação de referência que tem como um dos objetivos principais capacitar as mulheres. Muitos foram os desafios e as conquistas, muito embora os dias de hoje reavivem poderes políticos que colocam em causa direitos e mecanismos outrora conquistados. Em Novembro, na Cimeira de Nairobi – organizada pelo Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), o governo do Quénia e o governo da Dinamarca – iremos rever, renovar e redefinir os objetivos de há 25 anos através da mobilização da vontade política e recursos financeiros em conjunto com governos e organizações de todo o mundo.

O movimento SheDecides – Ela Decide – nasceu em 2017 depois da eleição de Donald Trump nos EUA ter produzido uma sequência de bloqueios no financiamento de projetos e mecanismos de resposta aos direitos sexuais e reprodutivos, não só nos Estados Unidos como um pouco por todo o mundo. Em 2019, este movimento juntou 25 jovens de 25 países diferentes com o objetivo de procurar a representatividade da geração pós-Cairo e ampliar a sua voz em Nairobi – uma voz que vive as resistências aos poderes políticos atuais, que enfrenta os desafios dos altos muros que o mundo constrói aos direitos humanos básicos e que está consciente da necessidade de visibilidade para a diversidade e fluída expressão humana.

Porque, sim, ela decide! Elas decidem! Nós decidimos!

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

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