Até quando pode o Homem bater recordes?

 


Antes de 1968, nunca os Jogos Olímpicos de Verão se tinham realizado a mais de 200 metros acima do nível no mar, mas esses Jogos da Cidade do México foram a 2240m de altitude. A menor concentração de oxigénio em altitude teve efeitos diversos no programa atlético. Nas provas de meio-fundo e fundo, as marcas foram de nível baixo, mas em salto em comprimento, triplo salto e velocidade bateram-se recordes do mundo. Nenhum durou tanto como o de Bob Beamon no comprimento (até 1991), mas falemos apenas dos casos de provas que são medidas em segundos e não em centímetros.

Só na estafeta masculina de 4x100, por exemplo, bateu-se o recorde do mundo por três vezes em três dias, desde a primeira eliminatória até à final. Como este, há vários casos de recordes do mundo que duraram apenas dias ou algumas horas, há outros que parecem eternos. Entre os recordes do atletismo de pista ao ar livre, mais maratona, o mais antigo é o de Jarmila Kratochvilova, nos 800m femininos, o mais recente é o de Dennis Kimetto, na maratona masculina. Um já dura desde 1983 (11.546 dias), o outro foi estabelecido no ano passado (159 dias). Se em homens e mulheres há recordes de longa duração, os números mostram que os recordes femininos têm uma longevidade média de quase o dobro (7007 dias) em relação aos recordes masculinos (3546 dias).

Se o de Kratochvilova, obtido em 1983 na cidade de Munique, é o mais antigo, aquele que é considerado como o mais difícil de ultrapassar é o de Marita Koch nos 400m planos (1985). A atleta da República Democrática da Alemanha fixou a marca da volta à pista em 47,60s em Camberra, sendo que só mais uma atleta conseguiu uma marca dentro dos 47 segundos, precisamente Jarmila Kratochvilova (47,99s). Só para se ter uma ideia de como as atletas contemporâneas estão longe desta marca, o melhor registo de 2014, por exemplo, foi da norte-americana Francena McCory, quase dois segundos mais lenta (49,48s) que o recorde de Koch. A marca que deu para a britânica Christine Ohuruogo conquistar o título mundial em Moscovo 2013, por exemplo, foi de 48,91s.

Durante a sua carreira, Koch estabeleceu dezenas de recordes, mas nunca se livrou da suspeita de doping, tal como os seus colegas da RDA. A velocista nunca teve um controlo positivo, mas antigos atletas do país já deram os seus testemunhos quanto à prática sistemática de doping. “A principal arma eram aqueles comprimidos azuis [o Turibanol] da Jenapharm, a companhia farmacêutica estatal”, escreveu nas suas memórias Arne Ljungqvist, presidente da Comissão Médica do Comité Olímpico Internacional. Tal como Koch, a checa Kratochvilova também levantou suspeitas, por só ter aparecido na alta-roda do atletismo depois dos 30, mas também pelo seu físico musculado e pouco feminino, o que sugeria o uso de esteróides.

As mesmas suspeitas rodeiam a norte-americana Florence Griffith-Joyner e os seus recordes de 100m e 200m, estabelecidos em 1988, tal como as marcas das chinesas Wang Junxia (10.000m) e Qu Yunxia (1500m), ambas de 1993. A longevidade das marcas e as suspeitas que as rodeiam já motivaram várias propostas de que todos os recordes estabelecidos antes de 2000 fossem eliminados das listas e, embora as evidências do uso de substâncias dopantes sejam numerosas, fazê-lo seria admitir que alguns dos grandes nomes da história do atletismo não passavam de batoteiros.

O mais antigo dos recordes masculinos pertence a Kevin Young, nos 400m barreiras, alcançado nos Jogos de Barcelona em 1992 e batendo na final o anterior recordista, o lendário Edwin Moses. Apenas mais três foram alcançados antes de 2000, nos 4x400m (estafeta dos EUA, em 1993), nos 1500m (Hicham El Guerrouj, 1998) e nos 400m (Michael Johnson, 1999). Mas há um nome que aparece três vezes nesta lista, Usain Bolt, detentor das marcas 100m (9,58s) e 200m (19,19s) planos desde 2009, e membro integrante do quarteto jamaicano recordista dos 4x100m em 2012. Há quem dê “Lightning” Bolt como candidato ao recorde de Johnson para deter o pleno da velocidade, já que os seus recordes das duas distâncias mais curtas parecem inatacáveis a curto e médio prazo, a não ser por ele próprio. Com melhor tempo de reacção e vento favorável no limite do permitido, ou mesmo beneficiando da altitude, Bolt poderá, dizem alguns estudos, fixar a marca do hectómetro abaixo dos 9,5. Para isso, talvez baste não abrandar para saudar o público quando está a cortar a meta muito à frente dos outros.

O tempo na natação é relativo. Olhe-se para o caso de Johnny Weissmuller, agora provavelmente mais conhecido por ser o Tarzan mais emblemático do cinema, mas que durante muito tempo foi considerado o melhor nadador de sempre. Praticamente imbatível, bateu mais de 50 recordes mundiais e ganhou todas as 12 corridas em que participou nos Jogos Olímpicos, conquistando cinco medalhas de ouro. Tornar-se o primeiro a baixar da barreira do minuto nos 100 metros livres, a prova-rainha da modalidade, foi um dos pontos altos da carreira do norte-americano. O seu melhor registo (57,4s) sobreviveu dez anos como recorde mundial, de 1924 a 1934, e no entanto, para os padrões actuais, apesar de obtido numa distância de sprint, seria considerado um tempo lento - não exactamente ao nível de Eric Moussambani, mas ainda assim lento.

Na natação, os recordes foram mesmo feitos para serem quebrados. O húngaro Zoltán Halmay foi o primeiro recordista dos 100m livres reconhecido oficialmente, depois de gastar 1m05,8s, em Viena, Áustria, em 1905. Mais de um século depois, a melhor marca (46,91s) pertence a César Cielo, 19 segundos abaixo da de Halmay e 10 abaixo da de Weissmuller. Ou, visto de outro prisma: se os três competissem simultaneamente, o húngaro e o norte-americano estariam 28 e 18 metros atrás do brasileiro, respectivamente, quando este atingisse a centena de metros. O actual recorde português (49,50s), de Alexandre Agostinho, só não daria para ganhar a prova nos últimos sete Jogos Olímpicos.

Para um efeito dramático maior, considere-se os 1500m livres, a maior distância da natação competitiva, na versão piscina longa e no sector feminino. Em 1922, a norte-americana Helen Wainwright percorreu-a em 25m06,6s. No ano passado, Katie Ledecky, a rainha da média e longa distância da actualidade, gastou cerca de menos 10 minutos (9m38s) do que a sua compatriota. Aos 15m28,36s da sua performance – tempo que o cronómetro registou para Ledecky –, Wainwright estava a 576 metros de completar os 1500.

Claro que se trata de comparações de coisas pouco comparáveis. Não se pode fazer paralelismo entre eras. “É tudo completamente diferente e assim será daqui a uns anos”, afirma João Paulo Vilas Boas. Este treinador de natação e professor de Biomecânica da Faculdade de Desporto do Porto ainda se lembra, por exemplo, do que significou ver Natasha de Sousa tornar-se na primeira portuguesa a baixar do minuto nos 100 livres, no final dos anos 80. “Foi espectacular!”. Em 2008, Sara Madeira nadou em menos de 57s.

A evolução é a norma, não apenas na natação. Há recordes mundiais que foram melhorados mais de 40, 50 ou 60 vezes desde que o primeiro foi registado. Os tempos progrediram radicalmente por vários motivos. Somos mais altos, mais fortes e a era do amadorismo, especialmente nas grandes nações da modalidade, ficou há muito para trás. Há mais e melhores treinos e as carreiras duram mais. As alterações de estilo e das regras (a separação dos bruços e da mariposa nos anos 50, por exemplo) também influenciaram decisivamente o desporto. Assim como o desenvolvimento tecnológico dos materiais. Até as piscinas se “tornaram” mais rápidas. Tudo conta para ganhar um centésimo de segundo – ainda que o “desaconselhável” bigode de Mark Spitz, em Munique 1972, não o tenha impedido de ganhar sete títulos (e todos acompanhados por recorde do mundo).

Há pouco tempo, assistiu-se ao maior “boom” de recordes da história da natação. Eles sempre caíram com alguma regularidade, mas muitas marcas tinham conseguido sobreviver ao teste do tempo. Os máximos de Janet Evans nos 400, 800 e 1500m livres e os últimos de Mary T. Meagher nos 100 e 200m mariposa duraram todos entre 18 e 19 anos e a holandesa Willy den Ouden teve o recorde nos 100 livres por 20 anos (1936 a 1956), entre outros exemplos. Mas nunca num período de dois anos como entre 2008 e 2009 houve tantos recordes a caírem. Ajudados pelos fatos de banho compostos de materiais não-têxteis, como o poliuretano, os atletas nadaram como nunca. Somente três recordes – todos nos 1500m livres – entre as mais de 80 provas da natação resistiram à era do vestuário de alta tecnologia.

Entretanto, apesar do regresso a fatos mais convencionais e da readaptação inicial, os nadadores parecem, aos poucos, ter encontrado maneira de voltarem a superar barreiras. Em Dezembro, no Mundial de Piscina Curta, no Qatar, foram registados 23 recordes mundiais.

Vivemos para nos ultrapassarmos. Mas há quem defenda que estamos a chegar aos limites da velocidade que um humano pode atingir na água e que isso, num futuro próximo, obrigará a uma estagnação das marcas. João Paulo Vilas Boas, contudo, acredita que os recordes continuarão a ser renovados. “Não tenho dúvida. Estamos na pré-história do conhecimento em todos os domínios. E no desporto ainda mais. Daqui a 100 anos, os recordes de hoje já terão desaparecido há muito”. Neste sentido, baixar dos 44 segundos nos 100 livres, por exemplo, é agora uma perspectiva real? Só o tempo dirá.

Notícia corrigida às 18h59 de dia 6 de Março, rectificando o local onde Kratochvilova obteve o seu recorde de 800m
 


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