“Alterações climáticas sem controlo, modernização global das armas nucleares e arsenais grandes de mais representam ameaças extraordinárias e inegáveis à existência continuada da humanidade, e os líderes mundiais não têm agido com a velocidade ou na escala que se exigia para proteger os cidadãos da catástrofe potencial”, disseram em Janeiro os cientistas herdeiros da organização fundada pelos que construíram a primeira bomba nuclear, o projecto Manhattan.
E, no entanto, esta avaliação drástica, feita depois do ano mais quente desde que começaram a ser feitos registos meteorológicos — segundo a agência espacial NASA e a Agência para os Oceanos e a Atmosfera norte-americana (NOAA) —, foi noticiada amplamente, mas sem criar grandes sobressaltos.
“Recebemos muito mais atenção do que nos últimos anos e ficámos muito satisfeitos”, disse ao PÚBLICO Rachel Bronson, directora da revista Bulletin of the Atomic Scientists, criada em 1947, por cientistas ligados ao projecto Manhattan, e que é responsável por publicar e divulgar o Relógio do Apocalipse. “Ficámos com a sensação de que há um aumento do interesse nestes assuntos. Talvez pelo agudizar das relações entre os Estados Unidos e a Rússia, talvez por causa das negociações com o Irão, ou por causa da Coreia do Norte.”
E, no entanto, é difícil tornar urgente o risco de uma catástrofe, mas que não se sabe quando acontecerá. Cria fadiga se nos estão sempre a recordar de um perigo que nunca mais se torna realidade. Como escreveu no Guardian Julian Baggini, escritor e fundador da revista The Philosopher’s Magazine, a propósito do último acerto do Relógio do Apocalipse, “esteja ou não correcta a nossa avaliação dos riscos actuais do mundo, não são os perigos que os cientistas consideram os maiores os que nos preocupam mais.”
“Sim, esse sempre foi o desafio de comunicar o risco de um confronto ou de um acidente nuclear: a probabilidade é reduzida, mas o impacto é muito elevado. E as alterações climáticas são efeitos poderosos que só sentiremos a longo prazo. É mais difícil de responder a isto do que a algo que aconteceu ontem”, reconhece Rachel Bronson. “É difícil alguém acordar e sentir-se assustado com estas coisas. Mas acho que a divulgação do relógio cria um momento em que as pessoas podem pensar e falar disto.”
A 22 de Janeiro, quando o Bulletin of the Atomic Scientists divulgou o último acerto do Relógio do Apocalipse, 400 mil pessoas acederam ao site da organização quase imediatamente, contou Rachel Bronson. “Foi muito mais do que nos últimos anos. A questão nuclear está a tornar-se algo mais próximo. Sentimos que há mais interesse do que há dez anos.”
O Relógio do Apocalipse estava na capa do primeiro número do Bulletin, em 1947, dois anos depois de os EUA terem bombardeado Hiroxima e Nagasáqui e o mundo ter visto os efeitos da nova arma que usava a energia explosiva da cisão dos átomos. O avanço ou recuo dos ponteiros do relógio é decidido por um painel de cientistas, especialistas em nuclear, desarmamento, armas, alterações climáticas, que analisam a situação mundial e fazem uma avaliação de quão perto a humanidade está de poder aniquilar-se a si própria.
Einstein na origem
Nesse primeiro ano, faltavam sete minutos para a meia-noite; 1991, após a queda do Muro de Berlim, e de os EUA e a ainda União Soviética assinarem o Tratado para a Redução de Armas Estratégicas (nucleares), foi o ano em que os cientistas, e o mundo, estiveram mais optimistas: o ponteiro dos minutos recuou até às 23h43. Há um claro desejo de intervenção política dos cientistas. “A mudança dos ponteiros do Relógio do Apocalipse é uma forma de concentrar a atenção das pessoas”, explica Bronson. “É um mecanismo grosseiro, algo discutível, que gera discussão: ‘Porque é que acelerámos o relógio?’, ‘Devíamos ou não ter movimentado os ponteiros?’. São cientistas que acertam o relógio e, no fundo, lançam uma conversa com o público sobre aquilo que nos ameaça a todos”, defende.
A intervenção política dos cientistas teve origem nas cartas escritas por Albert Einstein e pelo físico húngaro Leo Szilard ao Presidente norte-americano Franklyn Delano Roosevelt, a partir de 1939, alertando para os esforços do regime nazi para construir uma bomba atómica, e incentivando os EUA a construí-la primeiro. E, depois da guerra, no que ficou conhecido como o Manifesto Russell-Einstein, em 1955: um apelo aos políticos a “compreender, e a reconhecer publicamente, que os seus objectivos não podem ser satisfeitos por uma guerra mundial”.
O filósofo Bertrand Russell foi o impulsionador deste manifesto, que acabou por ser divulgado já depois da morte de Einstein, mas num momento em que a ameaça das bombas de Hiroxima e Nagasáqui se tinha agigantado: depois de se saber que os soviéticos tinham testado as suas primeiras bombas atómicas, o Presidente dos EUA Harry Truman deu luz verde para a construção de bombas termonucleares, mil vezes mais poderosas do que a bomba atómica. Em vez de usar a energia desencadeada pela separação dos átomos, a também conhecida como bomba H baseia-se em reacções tão poderosas como as que acontecem nas estrelas, onde os átomos de hidrogénio se fundem, numa reacção em cadeia que liberta uma energia monstruosa.
É verdade que a reacção, hoje, aos acertos do Relógio do Apocalipse não é tão significativa como foi nesse ano. “Mas é até injusto fazer essa comparação”, defendeu Rachel Bronson. “O mundo está diferente e o espaço dos media é diferente, mas é claro que gostamos sempre de ter mais atenção.”
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