O carro já andou em curva e contracurva, passando por localidades que parecem abandonadas. À beira do Atlântico muito azul, a estrada leva-nos até ao Nordeste da ilha de São Tomé, a Anambó, um nome que foi dado pelos colonizadores.
Por causa da situação geográfica, com possibilidade de entrada dos navios, a zona foi favorável à entrada dos portugueses, diz a historiadora Nazaré Ceita. E há inúmeras discussões sobre a data de chegada dos portugueses: uns dizem ter sido em 1471-72 e outros em Dezembro de 1470, tendo como protagonistas nesta entrada Pêro Escobar, João de Paiva e João de Santarém — com eles vieram padres e alguns escravos africanos, lembra a historiadora, pois este seria também um local de passagem dos escravos para o outro lado do mundo.
Com os primeiros portugueses, chegaram os primeiros escravos recrutados da costa africana, a 380 quilómetros, continua Nazaré Ceita.
“São Tomé e Príncipe é onde os portugueses aplicam uma colonização inédita, quer da população, quer das plantas necessárias a essa colonização. Sendo uma zona baixa, é o local onde se estabelecem os primeiros engenhos de açúcar. Nessa altura havia escravos recrutados da zona do Calabar, da zona da Baía dos Escravos, perto na Nigéria, perto da Costa do Ouro, dos Camarões.”
O primeiro desembarque dos portugueses foi num largo junto ao mar, marcado por um pequeno padrão, uma coluna envolta numa vegetação luxuriante. Nesta área estabeleceram-se os primeiros colonizadores e os escravos que trabalharam nas plantações de açúcar. “Até ao século XVIII temos uma verdadeira movimentação à volta da cultura da cana-de-açúcar, muito vendida nos mercados portugueses.” Mas a cana-de-açúcar chegava ao mercado português com muitos problemas de qualidade e isso terá estado na origem do abandono deste cultivo, nota ainda Nazaré Ceita.
Embora não consiga precisar os números, calcula-se que tenham passado por São Tomé e Príncipe milhares de escravos em direcção às Américas. Desde o início que esta é uma sociedade escravocrata — os escravos vinham para se ladinizar, outros seriam transferidos para o Brasil, para os mercados da Bahia ou Rio de Janeiro, continua. “Aqui era uma espécie de zona de engorda dos escravos para partirem para o Novo Mundo. Alguns ficavam, a maioria ia — mas falo numa fase posterior, no século XVIII.”
Uma das particularidades de São Tomé e Príncipe é que, segundo Nazaré Ceita, desde o início da colonização que os relatos e fontes falam da pouca pacificação dos escravos com o poder instituído. Tornam-se frequentes as notícias de escravos fujões, que aos poucos vão para a zona do pico.
“Pensa-se que os escravos fujões tenham constituído o grupo dos angolares de quem se fala como grupo enigmático de São Tomé e Príncipe. Há imensos relatos, sobretudo a partir do século XVI, de revoltas de escravos que combinavam o queimar dos engenhos e outros distúrbios. A revolta mais conhecida é a revolta chefiada por Amador, que, sendo um célebre escravo, é educado pelos colonizadores — sabia escrever, conhecia o exército. Tornou-se uma revolta internacionalmente conhecida. Foi em 1545 e durou cerca de um ano — chegou quase à beira da cidade de São Tomé.”
Largo das Alfândegas
Estamos agora no antigo Largo das Alfândegas na cidade de São Tomé, onde desembarcavam pessoas e bens. Há dois pontões que entram no mar, a costa é em forma de meia-lua. Num dos pontões, desembarcavam os europeus, no outro, os serviçais. “As ilhas tornam-se entreposto obrigatório”, continua a historiadora. “Era um local de transacção importante para o comércio colonial.”
Depois da cana-de-açúcar, inicia-se o ciclo do café, e a seguir o do cacau, em 1822. Põe-se, assim, a questão da mão-de-obra. Quem produz? É nesta altura que começa o policiamento do Atlântico, pondo em prática as ideias humanistas vindas da revolução francesa e em xeque a escravatura.
“As ilhas são tidas como local de tráfico e punha-se o problema de se eliminar o tráfico. A Inglaterra [que faz a abolição da escravatura em 1833] é que toma a posição de fazer o policiamento do Atlântico no sentido de pôr em ordem aqueles que continuavam a praticar o tráfico clandestino de escravos.”
E lembra que o tráfico não era “uma tarefa meramente europeia”, mas também de alguns são-tomenses. “No século XVI, temos uma portaria do rei a dizer que filhos de portugueses com escravas já eram, pela sua miscigenação, portugueses. São essas pessoas que serão traficantes de escravos.”
Só em 1875 é que seria abolida a escravatura em São Tomé e Príncipe. Na verdade, o trabalho forçado continuou, em moldes que muitos historiadores como Nazaré Ceita comparam à escravatura: aliciava-se mão-de-obra das outras colónias, sobretudo de Cabo Verde, onde havia grandes secas e fomes, e de Angola, Moçambique, Golfo da Guiné e Serra Leoa para trabalharem como serviçais. Embora oficialmente esse regime de trabalho forçado tenha sido abolido em 1962, na prática vigorou até ao final da colonização.
Nazaré Ceita relembra que o processo de transição da escravatura para o trabalho forçado foi difícil porque os antigos trabalhadores não queriam contratar-se com os patrões devido aos maus-tratos e castigos corporais que haviam sofrido.
“Grande parte desses trabalhadores abandonaram as suas antigas posições para virem concentrar-se nesta cidade à procura de novos postos de emprego que não [encontraram]. Para o trabalho forçado, vão-se estabelecer contratos de trabalho de três a cinco anos e infelizmente não eram exequíveis, pois muitos dos que vinham não conseguiam regressar. Havia manobras dos patrões para, no momento de atingir o fim do contrato, não os deixarem regressar. Em Angola, os sobas insurgiram-se contra a contratação para São Tomé e Príncipe porque os seus pares não regressavam.”
Porém, houve mesmo quem recusasse ser contratado, como os forros, o grupo maioritário da população são-tomense. Quando trabalhavam nas roças, era com emprego a prazo, “jamais como contratados”.
Curadoria-Geral dos Serviçais e Colonos
Numa rua perto da antiga Alfândega, lugar que antes era a Curadoria-Geral dos Serviçais e Colonos de São Tomé e Príncipe, criada para fiscalizar o trabalho dos serviçais e contratados, Nazaré Ceita recorda a imagem que se teria repetido vezes sem conta entre 1875 e 1974: os trabalhadores a passarem “por essa rua amarrados, em fila, uns atrás dos outros, para serem inscritos ou confirmados como trabalhadores e depois distribuídos pelas diferentes roças”.
Os serviçais, depois de serem inscritos, “eram atirados para um barracão até que viessem os patrões para os receber”. Com contratos assinados nos países de origem, onde se definiam as horas de trabalho, a comida, o alojamento, quais eram os materiais de trabalho, a vida dos serviçais “era semelhante à vida militar”.
“Quando se levantavam de manhã, tinham de se posicionar em fila para lhes serem distribuídas as tarefas, para serem controlados. Era a altura de receberem reprimendas mediante determinadas queixas — essas reprimendas podiam ser prisões na própria roça ou fora das roças. Há relatos de chicotadas, de toda a espécie de humilhação. Isso durou até 1974.
A escravatura terminou, no papel e na prática, no século XIX em vários países. Mas em São Tomé e Príncipe, até à independência no século XX, houve “todo um manancial de humilhações de trabalho forçado” que seriam facilmente confundidas com um regime de escravidão.
Esta reportagem foi realizada em parceria com:
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