O todo maior do que as partes

1. Vi muito menos do que gostaria do IndieLisboa mas sempre que fui parecia haver mais gente do que no meu bairro inteiro, de tal forma que, na última vez, o que achei ser o fim da fila para os bilhetes afinal ainda era o meio. Recambiada para as escadas, valeu um dos autores do filme que eu ia ver aparecer a um palmo para não me sentir de todo cegueta, além de fura-filas. E de caminho já dizer que esta crónica é sobre amigos. 

2. Em Fevereiro de 2013, dois fotógrafos, Martim Ramos e Guillaume Pazat, voaram de Lisboa para São Paulo. Amigos e companheiros no colectivo Kameraphoto, iam rever outro amigo e companheiro de colectivo, Jordi Burch, que há anos mora na cidade. Mas não eram férias: tinham concorrido a uma residência artística, três meses com alojamento pago. Fora isso, as despesas eram por conta deles, viagem, alimentação, transporte local, material de trabalho. O projecto aceite focava-se no Copan, largo arranha-céus em forma de onda desenhado por Oscar Niemeyer que é um dos maiores edifícios residenciais do mundo, mais de mil apartamentos. Não seria um trabalho apenas fotográfico: “Queríamos experimentar com webdoc, multimédia”, diz Martim. E durante semanas mergulharam nos labirintos do Copan.

 3. Deu-se o caso de essa residência artística (da FAAP, Fundação Armando Alvares Penteado) ser em pleno centro de São Paulo, na Praça do Patriarca, mesmo ao lado da prefeitura, o que fez com que todos os dias Martim e Guillaume tivessem à frente dos olhos, pela janela do quarto, um outro enigma em forma de arranha-céus. “Era um edifício de dimensão extraordinária com um ar abandonado, mas gente dentro. Aquilo não jogava. Um dia perguntámos ao porteiro da residência e ele disse que tinha sido ocupado [por centenas de sem-abrigo] seis meses antes, ao fim de quatro anos vazio.” Ao fim de décadas de luxo.

Foto
Martim Ramos

4. O Othon Palace Hotel foi inaugurado durante o quarto centenário de São Paulo, em 1954. Não aspirava a menos do que receber a Rainha de Inglaterra, e assim aconteceu, em pleno auge da ditadura militar. A história que se segue é a da catástrofe dos centros históricos no Brasil, progressivamente desabitados, devolutos, a ruir. Em 2008, o eixo financeiro de São Paulo já era há muito a Avenida Paulista, e o Othon fechou como hotel. No ano seguinte, a prefeitura, mesmo ali ao lado, assumiu o destino do edifício, para o reconverter em instalações suas. Assim estava, projecto em papel, deserto, quando os sem-abrigo, um dia, entraram.

5. Ninguém forçou a porta, ela estava aberta, diz uma das ocupantes em Othon, o filme que Martim e Guillaume decidiram fazer, depois do que o porteiro da residência lhes contara. Foram ao Othon ver com quem era preciso falar, souberam que a coordenadora da ocupação se chamava Dona Cida, andaram três ou quatro dias à procura dela, até que lhes disseram que tudo bem, entrassem. Então, durante cinco semanas conversaram, fotografaram e filmaram o quotidiano de 873 pessoas num edifício de mais de 20 andares sem água nem electricidade, o que também significa sem elevadores, os dois sozinhos, com uma mão extra de Jordi Burch na câmara, em alguns dias. “Ninguém se incomodou, foi tudo muito tranquilo”, lembra Martim. “Quando o pessoal se apercebeu de que éramos europeus, ficaram mais descontraídos. A grande preocupação deles era que não fôssemos da Globo ou da Record, porque estão habituados a ser mal retratados.” Martim e Guillaume perceberam bem essa diferença de abordagem quando, num dia em que a prefeitura foi lá fazer uma vistoria, apareceu uma equipa de televisão brasileira, acompanhada por um segurança gigante. “É essa a postura.” De resto, Martim diz que “foi mais fácil trabalhar ali do que no Copan, onde é tudo malta burguesinha”.

6. Desde as primeiras imagens, Othon é uma súmula não apenas desta ocupação como de São Paulo, do Brasil e das cidades contemporâneas, transbordantes de massas sem lugar e sem tecto. Ouvimos a voz da sem-tecto que acaba de chegar ao Othon, ela conta a guerra de cada dia na rua: pelo papelão onde vai dormir, para não ser roubada, violada, maltratada. E o que vemos entretanto é a escala abrupta dessa equação, o helicóptero que pousa no cimo do arranha-céus para que alguém se desloque sem tocar no chão, no trânsito, nos peões que lá em baixo trabalham para pagar esse helicóptero. Não vemos a cara dela, vemos a cidade no seu paradoxo: está exposta a luta, é sobre isso o filme. Que alívio, desde as primeiras imagens, alívio de não ver uma câmara em cima da cara de quem fala. Martim e Guillaume decidiram mesmo nem filmar as entrevistas.

7. “Aquilo está a acontecer ali mas está acontecer no mundo também, então o que nos interessava não era o nome de cada um, a cara, mas o momento, o que era maior do que cada um”, diz Martim. “É uma opção política, não queríamos que o filme fosse sobre dez pessoas. Associar uma frase a uma cara reduz a frase, e libertar as palavras da cara permite mais, tal como não filmar grandes planos é outra opção. Além de que as pessoas falam de uma forma diferente quando têm uma câmara apontada. Os testemunhos acabam por ser mais sinceros, mais profundos, sem o constrangimento do ‘repita lá outra vez porque a luz estava assim ou assado’.” É exactamente daqui, creio, que vem o meu alívio ao ver Othon, um documentário sem grandes planos, em que cada imagem vale por si, composição, enquadramento, luz, e a palavra é tratada como som, para ouvir, liberta de quem a diz. Porque não é só quem fala que diz menos com uma câmara em cima, quem vê também ouve menos. Othon é o todo maior do que as partes.

8. Estamos a falar de um filme de 38 minutos, feito em cinco semanas, com duas câmaras fotográficas que também filmam (Canon 5D), dois tripés (mas só um deles de cinema, ou seja, permitindo mover a câmara), um microfone, “um computador que estava a dar as últimas”, um disco rígido e zero financiamento. Não havia plano B: se algo tivesse acontecido ao disco, kaput; se o computador pifasse, kaput. Aliás, não havia plano A: Othon apareceu porque estava em frente à janela de Martim e Guillaume e eles decidiram fazer um filme com o que tinham. Não que isso faça o filme melhor, ou seja exemplo de como se deve trabalhar. Foi simplesmente assim, eles correram o risco.

9. Em Abril voltaram a Lisboa. Semanas depois explodiram os motins em São Paulo por causa do preço dos transportes, que desencadearam as manifestações de Junho, que pararam o Brasil. O Largo do Patriarca virou zona de guerra, os sem-tecto deixaram o hotel. Ao saberem disso, Martim e Guillaume pediram a Jordi para lá dar um salto. É o último, magnífico, plano fixo do filme.

10. As mais recentes notícias do Othon enviadas por um outro amigo fotógrafo, o João Pina, mostram luzes acesas. Alguém voltou.

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