Criadores e Criatura

Conhecem Serpa? Sim, essa mesmo, a que D. Dinis promoveu a concelho e mandou cercar de imponentes muralhas, a dos queijos de ovelha, a da telenovela Roseira Brava, a inspiradora indirecta do Bartoon que Luís Afonso (que orgulhosamente lá vive) cria diariamente para o PÚBLICO. Mas mesmo quem a conhece talvez não saiba que ali foi fundado em 2011, por iniciativa camarária, o Musibéria – Centro Internacional de Músicas e Danças do Mundo Ibérico, onde se realizam residências artísticas (possui um bem equipado estúdio, onde já se têm gravado discos como Pé de Vento, de A Presença das Formigas, ou Campaniça do Despique, de Pedro Mestre), conferências, concertos, exposições, workshops. Pois é uma Serpa moderna que ali se vai desenvolvendo, mas sem descurar as raízes alentejanas que, de uma forma ou de outra, acabam por “contaminar” saudavelmente os visitantes criadores.

Foi assim, aliás, que nasceu a Criatura. Não sabem o que é? Vão saber. Tem onze elementos mas não é uma equipa de futebol, é um grupo musical. E traz consigo modernidade e tradição em doses inteligentemente equilibradas, como se a Banda do Casaco pudesse ressuscitar em pleno Alentejo com vigor renovado e idêntica astúcia, acenando-nos com o antigo para fazer brilhar o novo. A sua história pode contar-se, para abreviar, em poucas linhas. Começa em 2013, quando um jovem de 21 anos decidiu largar uma carreira na comunicação (curso que tirara) para se dedicar em exclusivo à música. Edgar Valente, é esse o seu nome, nasceu na Covilhã, a 5 de Fevereiro de 1992, e tem familiares ligados ao fado (o tio, que ainda canta, e o avô, que tinha um restaurante e cantava também). Estudou comunicação na Faculdade Covilhã, mas também piano e voz no conservatório. Duas vias. Escolheu a segunda. A viver no Algarve a partir dos 16 anos, fez duo com uma rapariga, a cantar em bares, e aos poucos foi formando um grupo. Primeiro conheceu um guitarrista (João Aguiar) e um percussionista Tiago Vicente), fazendo em trio o circuito dos bares, cantando versões, e depois vieram um baixista (Paulo Lourenço) e um baterista (Fábio Cantinho).

Em quinteto, formaram uma banda funk a que chamaram Compotas (de “jam”, claro). Que ainda hoje existe, com a mesma formação. Mas Edgar não ficou por aí. Quando se candidatou a uma residência artística em Serpa (no Musibéria) tinha na mira outra coisa. Era já o embrião da Criatura. Aos cinco “compotas” foram-se juntando, aos poucos, outros músicos, vindos não só de grupos e de áreas diversas (jazz, clássica, tradicional, pop, mas também do teatro e outras artes performativas) como de diferentes regiões do país. Criatura, na sua essência, cresceu como um “frankenstein” elegante, misturando o que era possível misturar sem toldar o resultado final. E o grupo ampliou-se com Eloísa d’Ascensão (que estava em Serpa numa residência de marionetas e se juntou a eles como cantora), Yaw Tembe (trompete e instrumentos feitos por ele), Gil Dionísio (voz e violino), Ricardo Coelho (gaitas-de-foles, flautas, ocarina), Acácio Barbosa (guitarra portuguesa, guitarra campaniça, cavaquinho, acordeão) e Alexandre Bernardo (guitarra, cavaquinho e bandolim). E há outros nomes a somar a estes: Rui Júnior (que participou no disco), Tó Pinheiro da Silva (que fez as misturas e masterizações, além do som de palco) ou Pedro Leston (autor do desenho de luzes em palco).

De um disco já gravado e que deverá sair este ano (o nome é Aurora, fixem-no) puseram duas faixas para download gratuito durante um curto período (Filhe e Pastor Sem Cajado) e, em Serpa, na noite de 6 de Junho, apresentaram ao vivo na Praça da República vários originais que merecem, desde já, um vivo aplauso; e onde as raízes se entrelaçam, com visível bom gosto, com múltiplos sons da modernidade. Esteve com eles o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, com quem a Criatura (diz Edgar) tem aprendido a usar criativamente as suas diferentes vozes. E o Coral, que canta alentejanamente a capella, até já brinca: “Agora temos uma banda!” É verdade. E Portugal tem uma jovem Criatura que, nascida em Serpa, promete vir a dar que falar. Estejam atentos.

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