Lembram-se de Pierre Elliott Trudeau?

O novo primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, faz reemergir a memória do pai: o mais intelectual e iconoclasta chefe de Governo do Canadá.

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Se o novo primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, muito deve ao seu nome de família, reemerge também através do filho a memória do pai, Pierre Elliott Trudeau, que governou o Canadá durante 17 anos. O que imediatamente marcou os contemporâneos, no Canadá e fora dele, foi a sua meteórica ascensão ao poder em 1968, levado por uma irresistível onda de “trudeaumania”. Não era como John Kennedy, com quem o compararam, um líder mundial. Foi, como Olof Palme, uma figura fascinante, respeitada e incómoda na cena internacional.

Nascido em Montreal em 1919 numa família rica, bilingue e católica — a mãe era de origem escocesa e o pai puro quebequense —, pertencia à elite da elite. Passou por universidades como Harvard ou a Sorbonne, fez viagens exóticas, foi advogado e professor de Direito. Entrou tarde na política, aos 47 anos — disse  que o fez devido ao choque provocado pelo nacionalismo quebequense. 

Dois anos depois, o primeiro-ministro liberal, Lester Pearson, nomeou-o ministro da Justiça. Fez reformas, incluindo as do aborto e do divórcio. A que mais impressionou a opinião pública foi a despenalização da homossexualidade. Avisou: “O Estado não tem lugar nos quartos de dormir da nação.”

A “trudeaumania” — termo inspirado na “beattlemania” — surge em Fevereiro de 1968, quando anunciou a sua candidatura à sucessão de Pearson. Observou a socióloga Annis May Timpson: “O seu carisma e a capacidade para argumentar nas duas línguas tiveram um eco extraordinário num tempo em que as tensões subiam e explodiam literalmente em Montreal. Os canadianos adoraram este génio sexy, que queria criar uma ‘sociedade justa’.” E beneficiou de outros factores: mais de metade da população canadiana tinha menos de 30 anos e viviam-se os anos 1960.

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Com John Lennon e a mulher, Yoko Ono. Depois deste encontro, o músico afirmou: “Se todos os políticos fossem como o sr. Trudeau, então o mundo teria paz” Bettmann/CORBIS

Líder partidário e chefe do Governo em Abril de 1968, toma a iniciativa de convocar eleições antecipadas para 25 de Junho, obtendo a primeira maioria absoluta para os liberais desde 1953.

Os anos de poder

A grande batalha de Trudeau centra-se na nação canadiana: a luta contra o secessionismo do Quebeque, a revisão do federalismo e o “repatriamento da Constituição”. O Canadá era uma antiga colónia britânica e até 1982 a sua lei constitucional só poderia ser alterada pelo Parlamento britânico que a concedera.

O “repatriamento” era a devolução desse direito à Câmara dos Comuns canadiana. Após prolongadas negociações com as províncias canadianas e com Londres, a rainha Isabel e Trudeau assinam, a 17 de Abril de 1982, a proclamação de uma nova Constituição. Para Trudeau, isto significava “a descolonização constitucional do Canadá”.

O Quebeque rejeitou o acto. Em 1984, o Canadá tornou-se oficialmente bilingue. Mas também grande parte do Canadá anglófono não chegou a acordo sobre os moldes do federalismo multicultural. A polémica concentra-se na distribuição dos poderes entre as províncias e o Estado central. Para uns, Trudeau foi o “grande centralizador”. Para outros, o “grande descentralizador.

Clara foi a vitória sobre o independentismo quebequense. Defendeu sempre a permanência do Quebeque no Canadá, embora com uma identidade própria. No referendo de Maio de 1980, a tese federalista triunfou por 60% contra 40. Mas no referendo de 1995, já com Trudeau muito longe, o federalismo venceu tangencialmente: 50,6 contra 49,4. A “questão canadiana” continua em aberto.

Deve ser lembrado um episódio, a crise de Outubro de 1970. Membros da Frente de Libertação do Quebeque raptaram em Montreal um diplomata britânico e um ministro quebequense. Trudeau recusou a negociação e pôs tanques na rua da cidade, temendo um movimento insurreccional. O ministro, Pierre Laporte, foi assassinado. Trudeau foi acusado de violar as liberdade civis de que era arauto. Para ele, prevalecia a unidade do Canadá.

A sua popularidade começa a cair com as dificuldades criadas pelo choque petrolífero de 1973 e pelo crescente desemprego, culminando em 1975 quando impôs um duro programa de austeridade.

O iconoclasta

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Com os filhos Justin (agora primeiro-ministro), Sacha, e Michel. A fotografia foi o cartão de Natal da família em 1980 Bettmann/CORBIS

Perde para os conservadores as eleições de 1979, anuncia a sua retirada, mas o novo governo cai rapidamente e ele regressa triunfante com uma maioria absoluta em Fevereiro de 1980. Poderá, assim, concluir o “repatriamento da Constituição”. Termina a carreira política em 1984. Volta à advocacia e continua a sua batalha constitucional pelo reconhecimento do Quebeque “como sociedade distinta”.

No plano internacional, procurou autonomizar a política canadiana. Nunca hesitou em criticar os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha. Condenou a Guerra do Vietname e foi amigo de Fidel Castro.

Em 1975, Trudeau, conhecido pelas suas aventuras amorosas, casou-se com uma apresentadora de televisão quase 30 anos mais nova. Desgostou muitas fãs. Teve três filhos do casamento, que acabou em divórcio. O filho mais velho, Justin, é agora primeiro-ministro. E experimentou a tragédia com a morte do segundo filho, vítima duma avalancha.

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Visita a Fidel Castro em Janeiro de 1976 Bettmann/CORBIS

Morreu em 2000, de um cancro na próstata. Recusou o tratamento. O seu médico avisara-o de que sofria de um começo de demência. Decidiu que preferia ver o cancro tirar-lhe a vida antes de a demência lhe tirar a cabeça.

Barbra Streisand, com quem terá tido uma relação amorosa, disse dele: “Tanto pessoal como politicamente, Pierre era um homem complexo e fascinante, um espírito e um brilho que encantavam. Admirei-o também pela sua iconoclastia e pelo estilo não convencional, como no famoso dia em que entrou de sandálias na Câmara dos Comuns.”

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