A pediatra que se tornou uma best-seller mundial

A americana Nadia Hashimi foi buscar as suas origens afegãs para os seus livros. Acabou por se descobrir a si própria.

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Nadia Hashimi, uma pediatra de Potomac, no estado de Maryland, tornou-se romancista quase por acaso. Já tinha planeado a sua vida de médica quando, em 2009, ela e o marido, Amin Amini, um neurocirurgião, foram de férias para a ilha grega de Naxos.

Amini gostava de ficar na praia, a conversar, mas Hashimi estava concentrada nas suas leituras de Verão, que incluíam Joyce Carol Oates. O marido sugeriu-lhe que, já que lia tantos livros, o melhor era começar a escrevê-los. Ela nunca tinha pensado nisso, conta, mas a origem afegã do casal era um material possível para explorar.

Hashimi nasceu nos Estados Unidos há 37 anos, filha de pais afegãos. O marido, de 42, nasceu no Afeganistão, de onde partiu aos 17 anos, precisamente quando a ocupação soviética chegou ao fim. As suas vidas reflectem as de muitos novos cidadãos americanos cujas experiências tantas vezes geram controvérsia no debate americano: será que estes estranhos pertencem aqui?

Aqueles que lançam essa pergunta desconhecem a vida e a cultura das pessoas que chegam ao país legal ou ilegalmente, e que podem acabar, por exemplo, como empregados domésticos, num dos extremos, ou neurocirurgiões, no outro.

Quando estava na Grécia, Hashimi começou a olhar à sua volta. Nessa altura, o país era um destino para os refugiados da guerra no Afeganistão, entre outros, e muitos deles chegavam sem nada. Decidiu escrever sobre a experiência de emigração e começou o seu primeiro romance quando estava grávida do primeiro filho. Escreveu entre turnos nas urgências do Children’s National Medical Center em Washington. Queria acabar a história antes do nascimento do bebé, e conseguiu.

A escrita surgiu naturalmente. Ou por outra, sentiu que a história já estava dentro de si, só à espera do momento para sair. “E depois googlei: ‘Como encontrar um agente literário’”, recorda. “Obrigada, Google!” Enviou sinopses ou capítulos do que seria When the Moon is Low a vários agentes. Helen Heller ligou-lhe, precisamente quando estava em trabalho de parto. “Não consegui atender”, diz Hashimi. “Por isso ela voltou a ligar e eu disse ao meu marido: ‘Por favor, liga a esta mulher porque não quero que ela pense que estou a ignorá-la’.”

E assim, ao mesmo tempo que nascia o filho, em 2010, nascia também uma ligação que resultaria numa escritora best-seller internacional, com dois romances já publicados e um terceiro a caminho, todos passados no Afeganistão — um país que Hashimi visitou durante apenas duas semanas, pouco depois da queda dos taliban, mas de que ouvira falar durante toda a sua vida.

“Ela tinha tudo o que eu achava necessário”, diz Heller. “Fez com que eu me preocupasse com as personagens.”

Hashimi escreveu um segundo livro, que seria o primeiro a ser publicado, por William Morrow: The Pearl that Broke its Shell. É um absorvente “e maravilhoso romance de estreia”, escreveu-se no Washington Post. “Um relato lírico e pungente de vidas silenciadas”, considerou a Kirkus Review. Publicado no ano passado, teve mais de 18 edições nos EUA e no estrangeiro.

The Pearl... conta a história de Rahima, uma jovem que, porque os pais não tiveram rapazes, teve de se vestir e viver como um menino até chegar à puberdade. Este hábito — conhecido como basha posh — permite-lhe liberdades com as quais uma rapariga afegã nem sonharia. A história é intercalada com a da sua trisavó, que um século antes se vestia à homem.

When the Moon is Low foi editado este Verão. Fala de uma mulher que se torna adulta, casa e constitui família no Afeganistão, exactamente no momento em que os taliban tomam o poder. O romance segue-a, e a Saleem, o seu filho adolescente, na sua fuga, em viagens separadas, para o Irão, depois para a Turquia, de seguida para a Europa, numa tentativa desesperada de refazer a vida em Inglaterra.

Hashimi é uma tradutora cultural, diz uma amiga, a escritora afegano-americana Fariba Nawa. “As pessoas não sabem nada sobre as mulheres afegãs. A escrita de Nadia lança uma luz porque ela vem de lá.”

Os livros chegam numa altura em que o futuro do Afeganistão é uma incógnita após 14 anos de guerra. Hashimi não é particularmente optimista quanto às mulheres conseguirem manter os direitos duramente conquistados durante a ocupação dos aliados ocidentais. As forças fundamentalistas taliban lutam arduamente para reconquistar o poder e voltarão a impor restrições às mulheres e raparigas, limitando a sua possibilidade de trabalhar e estudar. A infiltração recente das forças do Estado Islâmico complicou o já de si instável ambiente político.

Entretanto, o caos instalado nos territórios islâmicos desencadeou uma emigração de refugiados em massa, que procuram segurança na Europa. As personagens de When the Moon is Low bem podiam ser sírias, iraquianas, libanesas. Qualquer um dos muitos milhões que estão à mercê das atrocidades.

Numa altura em que centenas de milhares abandonam a Síria e que as imagens gritantes daqueles que não sobrevivem à viagem são partilhadas em todo o mundo, a história da família de emigrantes de When the Moon is Low é ainda mais pungente e contundente.

Por isso, de certa forma, o romance reflecte tanto o passado como o presente — acontecimentos familiares recorrentes que atingiram Hashimi e o marido, apesar de terem tido muito mais sorte do que as personagens do livro.

Os pais de Hashimi conheceram-se no início da década de 1970 quando estudavam na Universidade de Cabul. Viviam num Afeganistão sem parecenças com o país que é hoje. Na capital, as mulheres vestiam roupas ocidentais, os jovens iam ao cinema e ouviam música. Foi antes dos taliban, antes da imposição da burqa.

Era um tempo de relativa calma, mas com pouco emprego, e por isso o pai foi para a América na esperança de encontrar uma vida melhor. Em Nova Iorque, partilhou o apartamento com outros emigrantes, fazendo turnos para ocupar a única cama que havia. A mãe foi para a Europa estudar Engenharia antes de ir ter com o futuro marido. Casaram-se na câmara municipal e a seguir foram a um restaurante chinês.

A mãe de Nadia tirou um mestrado, mas nunca conseguiu usá-lo devido a complicações com vistos e autorizações de trabalho; o pai abandonou os estudos de Engenharia Aeronáutica para tentar encontrar emprego. Trabalhavam em restaurantes, até o pai conseguir poupar dinheiro para comprar um franchise de um restaurante de frangos. Viria a ser dono de vários estabelecimentos desses.

Nadia nasceu em 1977. Ela e o irmão mais novo tiveram uma infância típica de subúrbios em New Jersey e no Norte do estado de Nova Iorque, com aulas de ballet, natação e carpool. Falavam inglês em casa por conveniência — os pais trabalhavam e o inglês era a língua da babysitter. Insistiam na importância de uma boa aprendizagem.

Hashimi conheceu Amini numa conferência, quando frequentava a Suny Downstate College of Medicine. Ele tinha deixado o Afeganistão e feito uma passagem pela Europa. O pai, um general do Exército afegão durante o domínio soviético, conseguiu, através de conhecimentos, tirar a família de Cabul. Depois de terminarem a especialidade, casaram-se, a 4 de Julho de 2008, num casamento tipicamente afegão. “Era um casamento mediano para os padrões afegãos”, diz Hashimi rindo, recordando a festa com mais de 200 convidados.

Hoje, vivem numa grande casa num bairro de classe alta em Potomac, com dois filhos e uma filha. Hashimi acabou por aprender farsi, a língua dos pais, que fala ocasionalmente com o marido quando querem que os filhos não percebam o que estão a dizer.

Recentemente, Hashimi senta-se, de manhã, na sua sala de estar decorada a bege e dourados. Está com o cabelo solto, a dar-lhe pelos ombros, sorri frequentemente e do outro lado vêm os gritos persistentes de um papagaio africano cinzento chamado Nickel. O pássaro sabe dizer os nomes dos seus três filhos — está grávida do quarto.

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Nadia Hashimi, fotografada na sua casa de Potomac, com um dos filhos Washington Post

Agora passa a maior parte do tempo em casa, concentrada na escrita, com a publicação do seu terceiro livro prevista para o próximo ano. Ocasionalmente ainda faz turnos nas urgências do hospital.

Por cima do sofá está um grande quadro com um poema escrito à mão chamado Children of Adam, do poeta persa do século XIII Sa’adi. Foi Amini quem o escreveu. “O poema diz que fazemos todos parte da humanidade, estamos interligados, e que aquilo que afecta um de nós afecta-nos a todos”, diz Hashimi. “É algo em que acredito — algo que, espero, seja expresso através da minha escrita também.”

As sobrancelhas perfeitamente arqueadas levantam-se quando recorda que a casa dos pais era um ponto de encontro de muitos amigos e familiares afegãos. Na casa de New Jersey havia sempre gente por todo o lado — pessoas que passavam lá o fim-de-semana em vez de regressarem para Nova Iorque no final de um dia de piqueniques e convívio.

Mas como era a vida no Afeganistão? Em 2002, com os taliban derrubados [pelos Estados Unidos], era possível ir lá saber. E foi o que fez, na companhia dos pais. “Não fui lá porque queria escrever um livro. Fui lá porque queria pisar aquela terra”, conta.

Hashimi descreve a sua viagem como um momento de descoberta e não de regresso a casa. Ela e a mãe nem sabiam que tipo de lenços usar para tapar a cabeça de forma a não darem nas vistas. Quando os familiares as foram buscar ao aeroporto ficaram atónitos com os hijabs apertados das visitantes, muito diferentes dos lenços simples e soltos usados pelas mulheres locais.

Hashimi sempre pensou nos pais como emigrantes, como afegãos de Cabul, por isso ficou surpreendida, ao andar pelas ruas de terra batida à procura de vestígios das casas que costumavam conhecer, que bastava um esgar para as suas roupas para as pessoas dizerem: “As estrangeiras chegaram.”

Nos anos que se seguiram à partida, a família tornou-se estrangeira na sua própria terra. “Havia sem dúvida este tipo de separação: as pessoas de fora e as pessoas que viveram lá durante a guerra e que nunca saíram”, conta. “Sobreviveram a tanto e a nossa experiência foi tão diferente. Aquilo fez-me pensar nos meus pais: ‘Afinal, onde é a terra deles?’.”

Foram visitar a casa da família do pai. Ainda viviam lá dois dos seus irmãos — cada um ocupou um andar, com a mulher e os filhos.

Mas o ambiente familiar da infância sofreu uma transformação quase surreal durante os 30 anos que passaram na América: a mãe conseguiu localizar a antiga casa da sua família, identificando-a pelo corrimão que sobrava de umas escadas. A estrutura solitária, abandonada, era tudo o que restava na rua inteira. Tudo o resto tinha sido reduzido a pó.

Uma segunda casa de família recuperou uma nova vida quando um dos primos se mudou para lá. Para Hashimi, foi um momento “arrepiante” quando ela e a mãe foram à cave da casa onde os avós maternos viveram e começaram a vasculhar os caixotes que ali estavam. Lá dentro, encontrou o seu antigo eu, que a olhava fixamente. Era um retrato tirado quando andava no segundo ano da escola. Os pais tinham enviado muitas cartas e fotografias à família. “Foi como uma cápsula do tempo de tudo o que se passou até ali”, conta.

A jovem estudante de Medicina tinha percorrido 11 mil quilómetros para chegar a uma cave poeirenta à procura de fogachos da vida dos outros e acabou por encontrar um bocadinho dela própria. A escolha dos pais de emigrar significou que Hashimi teve uma vida totalmente diferente da que teria se não tivesse sido assim. Mas o Afeganistão tinha ficado com ela, à espera de emergir.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

 

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