Sons & dóttirs

Os islandeses só me enganaram, que eu saiba, uma vez. Já passava da meia-noite quando aterrei em Keflavik, o aeroporto internacional que fica a uma hora de viagem de Reiquiavique. Estava a nevar, era Maio, e os meus companheiros de voo desapareceram num ápice. Resolvi perguntar: “Para Reiquiavique, como é que vou?” “Ah, agora só de táxi, já não há autocarros.” O taxista passou uma hora a desconvencer-me de fazer a reportagem que me levara à Islândia. Que não resultara nada de bom da kreppa, a crise que quase destruiu a economia da ilha em 2008. Assim que cheguei ao hotel percebi o logro. O autocarro passou.

O taxista cobrou-me uma fortuna em coroas desvalorizadas, mas não me enganou. Eles acreditam mesmo que não há nada de exemplar no que fizeram. Quase da mesma maneira, o mesmo me assegurou Salvör Nordal, a professora de Ética que foi eleita para reescrever a Constituição do país pós-crise (e que como os seus 24 concidadãos constituintes não militava em nenhum dos partidos da terra, nem no Melhor dos Partidos, que tinha como bandeira eleitoral adoptar um urso polar para o zoo da capital). Os islandeses têm uma noção concreta do que querem.

É o que lhes permite jogar em contra-ataque com romantismo, enquanto outros, como nós, damos uma imagem cínica do jogo de “contenção”. Já na altura, menos pelo Renato Sanches e pelo Quaresma, mais pela ancestral justificação do debate que eles causam – o “viver acima das nossas possibilidades” – perguntei a uma tradutora das nossas duas línguas tão diferentes o que achava das semelhanças e diferenças entre nós. Gudlaug Run Margeirsdóttir respondeu-me assim: "Os islandeses são menos complacentes. No dia-a-dia, os portugueses são mais críticos. Os islandeses são mais reservados. Em Portugal, pode dizer-se que 'isto é uma porcaria' e continuar a gostar de viver assim. Parece que os portugueses têm medo de ser um pouco mais agressivos. Às vezes, pergunto-me por que os portugueses não agem mais em vez de falarem tanto..." Sem querer falar demais, digo apenas isto: nunca poderei agradecer aquele banho quente debaixo de um nevão que tomei com ingleses e inglesas numa lagoa – a Bláa lónið. E se pensam que a voz de falsete do comentador Gumma Bem é épica, é porque nunca ouviram os islandeses a contar a história da sua crise bancária, por turnos, num teatro da capital, com transmissão radiofónica em directo. Foram dias e dias de activos tóxicos. E depois eliminaram a Inglaterra num referendo e não só.

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